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Comportamento

Na família de gente e bicho pela rua, Pébinha é irmão de Ralf que namora Sharon

Dividindo a mesma falta de teto, cães e moradores de rua viram família para dar e receber afeto

Kimberly Teodoro | 02/09/2018 10:05
Morando na rua, Damião divide o pouco que tem com o melhor amigo de quatro patas (Foto: Paulo Francis)
Morando na rua, Damião divide o pouco que tem com o melhor amigo de quatro patas (Foto: Paulo Francis)

Nas ruas há mais de 10 anos, Damião batizou o cachorro com um nome que rima com o próprio: Alemão. A história de companheirismo começou há um mês por escolha do próprio bichinho."Eu não encontrei ele, foi ele quem me encontrou. Ele me escolheu como família", relembra Damião. Ele também garante que Alemão "era rico", tinha uma casa e um dono e mesmo assim preferiu "largar tudo" para viver sob "a melhor morada que Deus fez".

Pelas ruas de Campo Grande, essas famílias surgem apesar da falta de teto. Quem já perdeu o contato com filhos, esposa, marido, pai, mãe...encontra nos animais o afeto e retribui com o cuidado.

Alemão acompanha o melhor amigo humano para todos os cantos e tem algumas peculiaridades, como parte do rabo faltando por causa de um atropelamento. Na boca, são 3 dentes a menos do lado direito, outra característica que o faz parecido com o companheiro.  "Sempre que ele coloca a língua pra fora é pelo buraco, para esconder a banguela" brinca Damião. 

Há 10 anos na rua, Daminão reconhece como família o cachorro (Foto: Paulo Francis)
Há 10 anos na rua, Daminão reconhece como família o cachorro (Foto: Paulo Francis)
Apelidado de Alemão, o cachorro acompanha o dono por toda a cidade (Foto: Paulo Francis)
Apelidado de Alemão, o cachorro acompanha o dono por toda a cidade (Foto: Paulo Francis)

Sem parada fixa e "se virando como dá" Damião vende pulseirinhas a R$ 2,00 e, quando consegue material, também faz esculturas em alumínio. O dinheiro, segundo ele, vai para a ração do cachorro, que também come de tudo. 

"Não dá para escolher muito, ele come o que tem. As vezes, eu não tenho comida para mim, mas eu posso passar necessidade, ele não. Se fica muito difícil paro nos açougues e consigo uma carne pra ele, as pessoas sempre ajudam quando é pra ele", conta o homem ao lembrar que recebe mais "nãos" do que o cachorro.

"Pébinha" também encontrou uma família na rua. Já atingiu a terceira idade por ali e vez ou outra troca de dono. "Ele ficava com um senhor que acabou voltando para a casa dos filhos, mas não pode levar o cachorro", conta o atual tutor de Pébinha que não quer ter o nome publicado no jornal.

Os dois se aproximaram como a maioria, dividindo os mesmos lugares abandonados. Por isso, um sabe quando o outro não anda bem. "De uns dias prá cá ele anda mais tristinho, dormindo bastante e com sangue saindo do pipi. Ele precisa de um veterinário, mas não temos condições de levar".

Pébinha continua nas ruas, mas não falta amor (Foto: Paulo Francis)
Pébinha continua nas ruas, mas não falta amor (Foto: Paulo Francis)

Na esquina da Rua 14 de Julho com a 7 de Setembro, mesmo doente, Pébinha acompanha o cuidador de carros todos os dias. Na família também está Ralf, o cão "namoradeiro". Descrito como um bichinho muito carinhoso e faceiro, com pelos ouriçados na cara, que dão a impressão de formar uma barba.

Ao contrário de Pébinha, Ralf tem permanecido pouco em "casa". O motivo da ausência, segundo o cuidador de carros, é a cadelinha Sharon, que em breve terá filhotes de Ralf. "Não sabemos o que vai ser dos filhotes, mas se ninguém quiser, a gente cuida também".

Sharon é parte da família que Andréa fez nas ruas (Foto: Guilherme Henri)
Sharon é parte da família que Andréa fez nas ruas (Foto: Guilherme Henri)

Andréia é quem cuida de Sharon durante a gravidez. A relação das duas resgata laços de família e repete comportamentos comuns dentro de um lar convencional. O tom de voz usado para tirar sarro da irmã mais nova ou a bronca da mãe, hoje toma conta de Andréia quando a conversa é sobre Sharon, referências de um tempo deixado para trás por causa da dependência química.

Dia desses, durante reportagem sobre outro assunto, o jornalista Guilherme Henri ficou encantado com a dedicação à "gravidinha". "O tempo que fiquei ali, a Sharon praticamente não se mexeu, mas a Andréia falava com ela como se fosse uma pessoa. Pela maneira como ela tentava arrumar o colchão, limpar e tirar os amassados, parecia que eu era uma visita que ela estava recebendo e que a casa é o colchão que ela divide com o marido e com a cadela".

Apesar do corpo destroçado pelas drogas, a lucidez de Andréia surge ao lembrar do passado. Ela diz que está nas ruas há 14 anos e se lembra da vida que teve antes da dependência, de ter cursado Administração até o terceiro semestre e da filha que já tentou tirar a mãe dessa situação diversas vezes.

Em meio a tantas dificuldades e amanhãs incertos, nenhum dos casos foi resultado de uma escolha direta dos moradores de rua, aproximados por situações de abandono parecidas. Para bicho e gente, a amizade parece fazer recuperar a sensação de pertencimento e da capacidade de se reconhecerem com alguém capaz de amar e ser amado.

Para os animais, "casa" é um conceito representado por pessoas. Damião confia em Alemão que já voltou sozinho tantas vezes. Já o tutor de Ralf diz que o maior medo é de um dia encontrar os "amiguinhos" atropelados e jogados em um canto da calçada. "Se eu pudesse, eu compraria uma coleira e uma corrente para ele ficar sempre comigo e não ir longe. Agora não dá, mas quando der vou ter certeza que nada vai acontecer com ele", avisa no tom de pai superprotetor.

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