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Entre a fúria das redes e o peso dos dados

Por Mário Luiz Sarrubbo (*) | 18/08/2025 13:30

O tempo está fora do eixo. A fala de Hamlet, de William Shakespeare, nunca foi tão atual. Na era da chamada política quântica, cujo maior exemplo é Elon Musk como a voz que representa os miseráveis, esse paradoxo sem precedentes tem pautado as discussões sobre um dos temas mais importantes para a população brasileira hoje: segurança pública. De fato, os últimos anos foram pródigos em notícias ruins nessa área. O crime organizado é agora transnacional e vem se infiltrando em nosso meio social e político. A violência urbana, o roubo do celular nas grandes cidades e o garimpo ilegal na Amazônia vêm pautando o debate na sociedade. Estamos todos ansiosos por soluções.

Esse quadro inaugurou uma nova realidade, instaurando uma verdadeira dicotomia com visões e perspectivas absolutamente distintas. O movimento conservador, ainda pautado pelo viés militar, com visão de combate ao inimigo, vem pregando a violência estatal como solução para o combate ao crime, propondo aumento indiscriminado de penas, cassação de benefícios como a saída temporária e até mesmo castração química para estupradores. Numa incansável marcha expressada em sucessivos recortes nas redes sociais, essa visão tem seduzido significativa parcela da sociedade, escorada num populismo penal focado em componentes emocionais, irracionais e vingativos, segundo o qual segurança pública se resolve com absoluto rigor repressivo. Cultiva-se a cólera da população, numa espécie de cruzada contra a criminalidade, conspirando-se contra o Judiciário, a audiência de custódia, as câmeras corporais, o uso diferenciado da força ou mesmo contra um sistema carcerário mais hígido e humanizado, potencializando a letalidade policial como o caminho para um País mais seguro.

Contudo, para além das convicções político-ideológicas de quem quer que seja, segurança pública exige abordagem técnica, que seja pautada por evidências científicas. Significa dizer que as políticas públicas de segurança devem ser construídas com base em pesquisas. É o uso da melhor evidência para a aplicação dos melhores e mais eficientes projetos. Trata-se, em verdade, de imperativo legal, posto que, no seu artigo 5.º, IX, a Lei 13.675/18, conhecida como a Lei que institui o Sistema Único de Segurança Pública (Susp), estabelece que essa política deve se basear em pesquisas, estudos e diagnósticos em áreas de interesse da segurança pública. Não é, portanto, uma opção, mas sim um dever imposto pela legislação em vigor. Se assim é, alguns dados precisam ser pontuados.

O primeiro deles é que, muito ao contrário do que se propala, o Brasil prende, e prende muito, seus criminosos. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de julho de 2024 apontam 852 mil pessoas presas em nosso país, a esmagadora maioria é de jovens negros com menos de 30 anos e de baixíssima escolaridade. O Mapa das Organizações Criminosas no Sistema Penitenciário Brasileiro, lançado em 2024 pela Secretaria Nacional de Políticas Penais do Ministério da Justiça e Segurança Pública, aponta que pelo menos 88 facções criminosas atuam em nosso sistema prisional. As evidências apontam, portanto, para uma política equivocada, que prende muito, mas prende somente a face mais visível da criminalidade, sem incomodar lideranças ou mesmo interferir no fluxo financeiro de organizações criminosas.

Por outro lado, dados do Conselho Nacional de Justiça indicam que nas audiências de custódia, a manutenção da prisão cautelar ocorre em 59% dos casos, ou seja, esses dados estão muito distantes do bordão “polícia prende, Judiciário solta”, até porque a esmagadora maioria daqueles que alcançam a liberdade são autores de crimes cometidos sem violência ou grave ameaça, sendo o furto o segundo crime com maior número de registros.

Por fim, outro dado que merece realce é a saída temporária de presos. Dados do mesmo Conselho Nacional de Justiça indicam que menos de 5% dos beneficiados não voltam ou cometem irregularidades. Vale registrar que em janeiro de 2024, só no Estado de São Paulo, 57.000 presos saíram, ou seja, a extinção do benefício prejudicaria mais de 53 mil presos que cumpriram as regras e podem ter seu benefício cassado.

Como se vê, são tempos de política quântica em que a disseminação de inverdades é uma bandeira, inexistindo a chamada realidade objetiva. Daí a importância de transferirmos esse debate para outros foros, que não as redes sociais.

Segurança pública eficiente exige políticas com visão multidisciplinar e foco nas causas da violência. É o que propõe, por exemplo, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), enfatizando a importância da construção de uma política de segurança cidadã, ajustada à realidade local e com participação da comunidade. Um projeto dessa magnitude impõe a quebra de paradigmas para que a gestão seja de fato integrada, priorizando-se inteligência e análise criminal, com foco na economia do crime, sem prejuízo do necessário olhar para a valorização dos profissionais do Sistema Único de Segurança Pública. O desafio é grande e exige maturidade de todos nós.

(*) Mário Luiz Sarrubbo, Secretário Nacional de Segurança Pública

 

Os artigos publicados com assinatura não traduzem necessariamente a opinião do portal. A publicação tem como propósito estimular o debate e provocar a reflexão sobre os problemas brasileiros.