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O direito penal do amigo. Por que não?

Por Carlos Eduardo Rios do Amaral (*) | 28/08/2011 10:00

O célebre escritor francês Victor Hugo, em sua obra “Os Miseráveis”, conta-nos (in Os Miseráveis – Wikipédia, a enciclopédia livre) inesquecível e emocionante passagem de seu livro:

“Jean Valjean, tendo servido durante 19 anos nas galés (cinco por roubar um pão para sua irmã e seus sete sobrinhos passando fome, e mais catorze por inúmeras tentativas de fuga) acaba de ser libertado. Valjean é marginalizado por todos que encontra por ser um ex-presidiário, sendo expulso de todas as estalagens. Ele iria dormir na rua, mas é recebido na casa do benevolente Bispo Myriel (conhecido como senhor Benvindo), o Bispo de Digne. Mas em vez de se mostrar grato, rouba-lhe os talheres de prata durante a noite e foge. Logo é preso e levado pelos policiais à presença de Benvindo. O Bispo salva-o alegando que a prata foi um presente e nessa altura dá-lhe dois castiçais de prata também, repreendendo-o por ter saído com tanta pressa que esqueceu essas peças mais valiosas. Após esta demonstração de bondade, o bispo o ‘lembra’ da promessa (que Valjean não tem nenhuma lembrança de ter feito) de usar a prata para tornar-se um homem honesto”.

Rejeitado pela sociedade por ser um ex-presidiário, Bispo Myriel muda a vida do personagem Jean Valjean. Ele assume uma nova identidade para seguir uma vida honesta, tornando-se proprietário de uma fábrica e prefeito. Ele adota e cria uma filha, salva uma pessoa da morte, e morre imaculado com uma idade avançada.

A vida e a solução de suas tormentosas aflições, a desordem e o embate entre indivíduos na sociedade, devem receber solução mais refletida e profilática, do que o encarceramento do ser humano nos porões de suas sombrias masmorras.

Nosso ainda vigente e ultrapassado Código de Processo Penal de 1941, em seus Arts. 386 e 387, bem resumem a que se presta a intervenção judiciária na discussão da infração penal: ou o juiz condena, ou absolve o agente.

Noutras palavras, a lei penal brasileira veda terminantemente outra solução para um processo penal. É vedado ao juiz promover a concórdia, resgatar a dignidade, afagar traumas ou acalentar o marginalizado.

O juiz do processo penal anda em trilhos que o escravizam, que o levam a lugar nenhum. Não deve, pela nossa lei penal, ousar o magistrado a pacificar o conflito com o óbvio e o evidente. Por mais perceptível e sentida que seja a solução da lide, somente lhe é dado aquelas duas malditas alternativas.

A solução pacífica do litígio, a mediação e a conciliação, demais técnicas de composição amigável, são expressões que ressoam como uma blasfêmia à legislação penal, uma heresia ao Direito Penal ainda posto em vigência.

Não! Definitivamente, não! Não deve o magistrado jamais se apiedar, compreender ou se interessar pelas nuances do crime e sua história ou mesmo seu drama mais do que o necessário para a formação de seu “juízo de convencimento”. Afinal, o CPP quer que seu convencimento seja apenas o bastante e suficiente para mandar o agente para o xadrez ou absolvê-lo.

O crime é um fato social que deve ser recortado da vida de seu agente, para se extrair apenas dele uma paisagem contemplativa, aonde nada poderá ser feito pelo outro pedaço de vida que ficou para trás. Deve ser desinteressante ao julgador saber das amarguras e percalços enfrentados pelo acusado antes do cometimento do crime.

A palavra da vítima, se não for para a formação da culpa, também será desimportante para o processo penal. Seus anseios não interessam ao processo penal de hoje. Quer por que se quer, ao arrepio das leis da física, que o Estado seja o verdadeiro lesado pela infração, o chamado “sujeito passivo direto”. O ofendido, mero coadjuvante, deve ser concebido como indiretamente atingido pelo delito.

Interessante notar que quando verdadeiramente atingido o erário, a fazenda pública, a administração pública, o direito penal, aí condescendente, recebe plasticidade e envergadura máximas. O parcelamento e quitação do tributo impedem a deflagração do processo penal, o rombo na previdência social pública pode ser escusado pelo refinanciamento ao seu sonegador. Está certo, são técnicas de encerramento de demandas que mais satisfazem o Estado Democrático, do que a prisão do ser humano.

E assim por diante, como acontece nestes delitos do colarinho branco, deve ser o processo penal para toda a sociedade em geral. A evolução do sistema punitivo estatal deve evoluir, para todos, sem distinção, para contemplar meios e recursos que eficazmente ponham fim às causas e conseqüências da infração penal. A punição exemplar depois de solucionada a falta cometida talvez seja um plus descartável.

O avanço destruidor do “crack” na sociedade e, principalmente, na célula familiar, pode ser citado, talvez, como o maior exemplo de quanto o juiz brasileiro é refém de um sistema processual penal que, definitivamente, não funciona bem. A sentença final, inflexível e indiferente ao sentimento das partes, espera do juiz outra coisa, mais simples, menos heróica.

Não se quer, aqui, abolir a pena privativa de liberdade.

Mas não se pode ter em mente a prisão como primeira e imediata resolução para o crime. Não se pode inocular o mesmo antídoto para doenças diversas. Assim como a aspirina não cura o canceroso, a quimioterapia não é indicada para a dor de dente.

O Direito Penal não pode, em cruel rol taxativo, estabelecer qual a melhor resposta para o crime praticado e suas conseqüências. Pode e deve, sim, estabelecer várias alternativas, rotas de auxílio, atalhos para aplacar as conseqüências da infração e metas a serem alcançadas. Jamais ousar a impor ao magistrado que a primeira e a única opção, a mais reluzente aos seus olhos, deva ser o encarceramento do ser humano.

O Ministério Público e a Defensoria Pública seriam os fiscais do acerto da profilaxia judicial eleita no processo penal. O irresignado poderia se insurgir quanto à solução adotada pelo juiz em cada caso concreto. A opção pela prisão do agente deverá ser a ultima ratio.

A prova dos nove do que diz aqui é muito simples. O que são as prisões hoje no Brasil? Escolas do crime, às vezes com mestrado e doutorado. O condenado entra como um principiante ladrão-de-galinhas e sai como sócio remido de alguma facção ou organização criminosa, com diversas empreitadas já previamente estabelecidas para após sua liberdade. Se não aceitá-las, talvez morra por ser tido como infiel desertor, a mando de seus colegas de cela.

A medicina psiquiátrica, a psicologia, a assistência social, a pedagogia, entre outras tantas ciências complexas e salvíficas, despontam em nosso País, com excelentes e renomados profissionais. Temos que abrir as portas dos fóruns a essa gente dedicada e qualificada, que muitas coisas nos têm a dizer e ensinar.

Assim como o inadequado uso de um antibiótico pode aniquilar seus efeitos para sempre. A prisão, como resposta estatal para o crime, pode, também, para sempre destruir um ser humano, por algo que muito bem poderia ser tratado e curado de outra forma, mas simples e eficaz.

Vamos sair às ruas para colocar todos os vendedores de CD’s piratas e usuários de “crack” na cadeia? Jogar aquele flanelinha suspeito na grade?

Isso vai, sinceramente, resolver alguma coisa?

O legislador deve confiar no Poder Judiciário, confiar na criatividade e experiência dos juízes e tribunais. Autorizar que esses agentes promovam a paz social, por todas as formas possíveis, abrindo um leque infinito de opções para tanto. O rol de penas restritivas de direitos inibe a criatividade dos juízes, não se presta para a infinidade de casos que se apresentam no dia-a-dia, sem falar que são meramente substitutivas.

Enfim, esse é hoje o maior desafio que o Direito Penal deve enfrentar, se quiser estar afinado com a questão da dignidade da pessoa humana. Transformar a sentença penal em instrumento efetivo e concreto de pacificação social, longe de paredões e cadafalsos.

(*) Carlos Eduardo Rios do Amaral é Defensor Público do Estado do Espírito Santo

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