Os vencedores merecem suas vitórias?
Nas últimas décadas, a promessa da autodeterminação do nosso destino, com base no nosso esforço e talento, nos orientou. A meritocracia é promovida por seus defensores como sendo a superação das injustiças arbitrárias de outrora. Agora, no sistema meritocrático, pessoas comuns, munidas apenas de talento e ambição, disputam recompensas com base em seu mérito. Ela promete, assim, oferecer condições de justiça, igualdade e oportunidade.
Por que vem sendo ela, então, alvo de críticas? Quem haveria de se posicionar contra um critério de organização social que promovesse eficiência e oportunidades iguais?
Seus opositores alegam que, por trás do seu lado sedutor, a meritocracia esconde seu lado tóxico. Sua premissa, aparentemente simples, de que “se as chances são iguais, os vencedores merecem suas vitórias” mascara suas profundas implicações que determinam como valoramos sucesso e fracasso e, por conseguinte, como tratamos aqueles que venceram e aqueles que ficaram para trás (Daniel Markovits e Michael Sandel).
Desse embate inicial, é possível perceber que parte da discordância pode estar, na verdade, naquilo que cada grupo considera como meritocracia. Assim, há de se diferenciarem, desde logo, os conceitos de sistemas meritocráticos e de ideologia meritocrática.
Sistemas meritocráticos, quando utilizados, avaliam o mérito em contextos delimitados e pragmáticos. Exemplo são as disputas por cargos ou vagas com base na qualificação dos candidatos. Busca-se viabilizar a disputa mais isonômica possível, a fim de maximizar a eficiência e de alcançar o justo ou, pelo menos, de afastar o manifestamente injusto na escolha. É de se esperar que mesmo os críticos da meritocracia, em seu sentido mais amplo, concordem com a aplicação de sistemas meritocráticos.
Nesse sentido, o autor Michael Sandel, em seu livro A Tirania do Mérito (2020), afirma: “Não há nada de errado em contratar pessoas com base no mérito. Aliás, em geral, é a coisa certa a se fazer. […] Seria errado discriminar um candidato mais qualificado com base em preconceito de raça, religião ou sexo e contratar uma pessoa menos qualificada no lugar dele”.
Por outro lado, diferente é o caso da ideologia meritocrática (Lívia Barbosa). Nela, a análise do mérito extrapola o pragmatismo da escolha mais eficaz e justa numa conjuntura isolada. O mérito individual passa a ser analisado moralmente, com efeitos amplos sobre toda a ordenação social, inclusive para fins de justificar a própria distribuição socioeconômica. Explica a autora: “Ou seja, num universo social fundado numa ideologia meritocrática, as únicas hierarquias legítimas e desejáveis são aquelas baseadas na seleção dos melhores. Prestígio, honra, status e bens materiais devem ser concedidos àqueles selecionados como os melhores”.
Como visto, na ideologia meritocrática, o mérito é mais difuso, ao extrapolar o cenário de aplicação restritivo dos sistemas meritocráticos. Ademais, ele acentua o aspecto moral do merecimento.
Numa sociedade com essa ideologia arraigada em sua estrutura, podem ser verificadas duas situações. A primeira, de que posições sociais e econômicas intuitivamente passam a representar uma hierarquia meritocrática e moral. A segunda, de que os bem-sucedidos podem reivindicar seu sucesso por seus méritos, enquanto aos perdedores cabe suportar a culpa por seu fracasso.
Nota-se que as críticas à meritocracia são, na verdade, endereçadas à ideologia meritocrática e aos seus desdobramentos. Agora, a pergunta central a ser enfrentada, que fundamenta as críticas apresentadas, fica mais evidente: afinal, os vencedores merecem moralmente suas vitórias?.
As diferentes doutrinas de pensamento político e econômico convergem para afastar a reivindicação moral efetuada pelos indivíduos considerados vencedores no contexto da ideologia meritocrática. No campo igualitário, John Rawls levanta como objeções a casualidade dos fatores que influenciam o resultado, tais como a oportunidade social, a habilidade natural, a influência do ambiente no desenvolvimento individual, entre outros, os quais inegavelmente afastam do indivíduo o controle sobre sua sorte. No campo do livre mercado, Friedrich Hayek aponta a desconexão entre o mérito do indivíduo sobre as habilidades por ele desenvolvidas e o interesse do mercado em recompensá-las, enquanto Frank Knight expõe a dissociação entre contribuição social dessas habilidades e seu valor de mercado.
Ao contrário das ideias sedutoras que a ideologia meritocrática difunde, as posições socioeconômicas são ocupadas sob influência de fatores sobre os quais os indivíduos não detêm controle. Nessa esteira, em uma sociedade eivada dessa ideologia, devem se afastar as reivindicações morais de prestígio e o julgamento de demérito aos sujeitos nela inseridos em decorrência de onde se encontram na sua hierarquia meritocrática.
Os vencedores, como sintetiza Sandel, podem dizer, com honestidade, sobre seu sucesso, que o conseguiram, “por meio de uma mistura incomensurável de genialidade ou astúcia, tempo ou talento, sorte ou coragem ou determinação sombria, atender de modo efetivo à confusão de desejos e anseios, independentemente de serem importantes ou frívolos, que constitui a demanda de consumidor em qualquer momento”.
Posto dessa forma, a conquista do sucesso é – ou deveria ser –, acima de tudo, motivo de humildade. E sua contemplação consciente, estímulo de empatia para com aqueles que, por qualquer das eventualidades possíveis, foram impedidos de lograr a mesma sorte.
(*) Angelo Trois Maestri é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela UFRGS.
(*) Alejandro Montiel Alvarez é professor da Faculdade de Direito da UFRGS e orientador do trabalho de conclusão de curso que deu origem a este artigo.
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