Por um marco jurídico à altura da organização das facções
O Projeto de Lei (PL) que tramita, neste momento, no Congresso Nacional, sob relatoria do deputado federal Capitão Derrite (PP-SP), recoloca em pauta uma pergunta que o Brasil já tarda em responder: as facções criminosas, que dominam territórios, corrompem instituições e impõem normas próprias, ainda podem ser tratadas, tão somente, como organizações delituosas — ou já transitaram para o domínio do terror político e social?
A resposta parece inequívoca. O Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV), tal qual outras estruturas análogas, atuam segundo uma lógica de poder totalitário, que transcende a criminalidade comum. Organizadas e com orçamento, elas intimidam populações, desafiam o Estado, desestabilizam políticas públicas e estabelecem, em parcelas do território nacional, um sistema de coerção autônomo, fundado no medo e na força. O resultado é um Estado em permanente contenção, que reage mais do que age — um Estado sitiado.
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Nesta moldura, equiparar as condutas das facções ao terrorismo não é exagero semântico, mas, sim, resposta institucional à uma nova tipologia do crime. O terror que as facções disseminam — difuso, contínuo e territorializado — é idêntico ao praticado por grupos que, em outros contextos, são classificados como inimigos da ordem pública e da Segurança Nacional. Negar tal evidência é insistir num anacronismo jurídico que protege a vigorosa interpretação textual e, ao mesmo tempo, desprotege a sociedade.
O substitutivo relatado por Derrite — que amplia as hipóteses de persecução, reforça o confisco de bens, admite a infiltração por pessoas jurídicas e eleva o teto punitivo — representa inflexão corajosa. É o reconhecimento de que o crime organizado já não se combate com a gramática processual do delito comum, mas com um regime jurídico próprio de enfrentamento e sufocamento estrutural, que articule inteligência, repressão financeira e autoridade institucional.
Nada disso, porém, autoriza descuido técnico. O promotor de Justiça Lincoln Gakiya, do Ministério Público (MP) de São Paulo, cuja biografia se confunde com sua resistência ao PCC, advertiu, no início desta semana, para um risco concreto. A redação atual da matéria antifacção pode restringir a atuação da Polícia Federal (PF) e do MP no combate ao crime organizado no País, particularizando a investigação apenas às Polícias Civis e, assim, quebrando a espinha dorsal da integração interinstitucional que sustentou operações importantíssimas deflagradas no Brasil, nos últimos tempos, e que desarticularam quadrilhas inteiras, a exemplo da "Carbono Oculto" e da "Fim da Linha" - só para citar algumas.
A advertência é legítima e merece acolhimento técnico, não político. Ao meu juízo, o texto deve ser aperfeiçoado, a fim de se afirmar a cooperação compulsória entre União e Estados, ao passo em que se preserva as competências constitucionais e se evita lacunas interpretativas que fragilizam a eficácia do sistema de enfrentamento - Jurídico e de Segurança Pública.
O mérito do projeto, no entanto, é inegável. A proposta rompe com a hesitação conceitual de um Estado que temia nomear o inimigo. O crime organizado brasileiro age, afinal, como poder paralelo e, portanto, deve ser combatido sob parâmetros de soberania.
Não se trata de militarizar o Direito, mas de dotar o Estado Democrático de instrumentos compatíveis com a complexidade da ameaça que o desafia. Como ensinou a experiência italiana, "onde tudo é máfia, nada é máfia". Contudo, onde o Estado hesita em reconhecer a máfia, tudo se torna refém dela.
O Brasil precisa de um marco jurídico que reafirme o monopólio da força pelo Estado e que reconheça o caráter terrorista das facções - não por retórica punitivista, mas por dever constitucional de autodefesa da República.
O desafio, pois, é restaurar o equilíbrio entre o vigor repressivo e a legalidade democrática, lembrando que a complacência institucional é a mais sofisticada forma de rendição.
(*) Fernando Capano, advogado; doutor em Direito do Estado, pela Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito do Estado e Justiça Social, pela Universidade de Salamanca (Espanha)
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