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Arquitetura

Mangueiral que vai virar condomínio guarda lenda de um tesouro perdido

Quem passou dos 50 e 60 anos, talvez se lembre das mangueiras gigantescas da Rua Spipe Carlage

Por Thailla Torres | 23/12/2025 14:10
Mangueiral que vai virar condomínio guarda lenda de um tesouro perdido
Parte do mangueiral que será preservada concentra mangueiras de grande porte e abriga uma nascente, área que, segundo o proprietário, deve ser mantida conforme a legislação ambiental. (Foto: Henrique Kawaminami)

O mangueiral da Spipe Calarge, divisa do Jardim TV Morena com a Vila Carlota, em Campo Grande, não tinha placa, não tinha portão e, por muito tempo, nem parecia precisar de um nome. Era um lugar “ali no fim da avenida Fábio Zahran”, “perto da Rua do Sol”, “próximo da Rua Pires do Rio” “onde tem aquelas mangueiras enormes”.

RESUMO

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O tradicional mangueiral da Spipe Calarge, em Campo Grande, passa por transformações com a derrubada de árvores para dar lugar a um condomínio. O local, conhecido por suas mangueiras centenárias e referência para moradores há décadas, terá parte da área preservada devido à existência de uma nascente. O espaço, que pertenceu à família Zahran, carrega histórias e lendas urbanas, incluindo relatos sobre tesouros enterrados e assombrações. Para moradores antigos como Marli da Silva, 79 anos, o mangueiral representa memórias de infância e convívio familiar, tendo sido palco de brincadeiras e encontros por gerações.

Quem tem mais de 50 anos costuma falar com uma certeza que não vem de documento, mas de repetição: aquilo sempre esteve ali. E, se sempre esteve ali, então virou referência de bairro. Um pedaço de natureza que resistiu numa cidade que cresce cada vez mais. E que ainda guarda uma lenda urbana regada a "ouro".

Nos últimos dias, a paisagem do lugar mudou. Algumas das árvores que dominavam a área foram derrubadas, e o chão, antes escondido por sombra e mato, virou terreno aberto, com troncos cortados e restos de galhos. A limpeza faz parte do processo de preparação de uma área privada onde está prevista a construção de um condomínio, segundo relato do proprietário ao Lado B que prefere manter a discrição.

Ele afirma que uma parte será preservada por existir ali uma nascente, o que, por lei, exige proteção ambiental. Ainda restam oito mangueiras de grande porte, concentradas justamente nessa porção que deve permanecer em pé.

Mangueiral que vai virar condomínio guarda lenda de um tesouro perdido
Imagem do mangueiral antes do corte de algumas árvores do terreno. (Foto: Google Maps)
Mangueiral que vai virar condomínio guarda lenda de um tesouro perdido
Imagem nesta terça-feira (23) mostra terreno sem algumas pés, onde será construído um condomínio. (Foto: Henrique Kawaminami)

O que acontece quando uma paisagem conhecida começa a desaparecer é quase sempre a mesma coisa: A dúvida cresce, a curiosidade se espalha e, junto dela, as versões. O lugar era mal-assombrado? Tinha tesouro enterrado? Aconteceu coisa ruim ali? As histórias voltam à boca do povo e a vontade de resgatar o que não está escrito em lugar nenhum.

Para entender por que um mangueiral pode virar assunto de gente que nem mora perto, basta lembrar que ele ultrapassa a vida de muito trintão e quarentão. Quem passou dos 50, 60 anos guarda memórias mais vivas: as mangas “gigantescas”, os diferentes tipos de fruta, o cheiro que invadia a rua em dezembro e janeiro.

 “Virou o perfume”, define uma moradora antiga. E o que não dá para provar, dá para imaginar que algumas árvores tinham idade demais para caber em uma vida humana. Talvez décadas, talvez um século. Ninguém crava. Mas todo mundo jura.

O histórico de propriedade circula do mesmo jeito, de boca em boca. Há moradores que atribuem a área a uma das famílias mais influentes da cidade, os Zahran, com raízes antigas na região e presença marcante desde a década de 1960, quando a área ainda era descrita como fazenda, grande e contínua, numa Campo Grande que se expandia. Parte desse território, com o tempo, teria sido repartida entre familiares. E foi mesmo um dos donos com quem conversamos que confirma.

Mangueiral que vai virar condomínio guarda lenda de um tesouro perdido
Marli é uma das moradores que vive ao lado do mangueiral e conta as lendas do lugar. (Foto: Henrique Kawaminami)

O tesouro perdido 

Na vizinhança, nem todo mundo sabe do mangueiral. Em casas mais recentes, moradores admitem que ouviram falar, mas não conhecem detalhes. Mesmo quem vive ali há 20 anos ainda convive com a sensação de que o mangueiral tem história, mas que essa história nunca foi oficialmente contada.

O que todo mundo sabe é o que deu para ver por muito tempo, o acesso era fácil, e a criançada tratava o lugar como extensão da rua. “Já fez campinho, jogava bola”, lembra Marli da Silva, 79 anos, que vive na Rua do Sol há 27 anos. O mangueiral, para ela, foi cenário de infância e de rotina. “Meu filho subia, meu ex-marido subia até no topo. Ele estava de galho em galho parecendo macaco”, diz, rindo, ao reconstituir uma época em que a sombra era brinquedo.

Marli não fala como personagem pronta para virar símbolo de uma disputa. Ela fala como quem está acostumada a olhar a mesma paisagem há tempo suficiente para notar quando algo muda. Na varanda, ela aponta onde antes havia mais árvores e onde agora o terreno foi aberto. “Cortaram desse pé de manga para lá”, diz. E, ao mesmo tempo em que descreve a derrubada, emenda as histórias que sempre rondaram o lugar, como se a cidade tivesse deixado guardadas ali suas crenças em forma de boato.

A mais famosa é a do tesouro. Marli ouviu muito isso. “Diziam que ali tem um tesouro. A gente nunca achou”, afirma. A história, segundo ela, vem de longe e inclui marcas no terreno, um ponto específico “depois daquele pé de manga”, e até uma “forquilha” que indicaria o lugar exato. Mas andamos por ali nesta terça-feira (23) e também não encontramos.

Existe também a fama de assombração. “Muita gente fala que é mal-assombrado”, diz Marli, mas ela mesma nega. Para quem mora na Rua do Sol, diz, nunca houve “assombração” nenhuma. Ao contrário, a casa dela carrega referências de fé e um passado familiar de igreja, com uma porta antiga guardada como relíquia do tempo em que o pai recebia fiéis ali.

E medo, ali, não é só folclore. Marli descreve que, em outros períodos, a área já foi vista como perigosa, com relatos de situações de insegurança pela escuridão em meio às árvores. É o lado menos romântico do “mato” no meio do bairro. Para algumas gerações, era aventura; para outras, era risco. Com o passar do tempo, conforme o entorno se adensou e as rotas mudaram, a sensação de segurança também oscilou.

Segundo o proprietário, as derrubadas realizadas até aqui foram autorizadas, e há contrapartidas previstas, com replantio já em cultivo. A área é privada, e o processo segue as etapas de limpeza para a obra, com a promessa de preservação da parte onde há uma nascente. Mas as histórias, bem, as histórias fazem parte do lugar e também vão permanecer na memória afetiva.

Na prática, o mangueiral deixa de ser um território amplo de sombra e passa a existir como lembrança. Marli diz que, sempre que pode, olha para as árvores que restaram com alegria. “São muitas memórias boas”, finaliza.

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