Teatro quebrou muros do presídio e lembrou detentas que ainda há vida
Peça de Nelson Rodrigues despertou lágrimas e inquietude nas mulheres presas no Irmã Zorzi
Quando a atriz Tauanne Gazoso sai do canto do auditório do presídio com um vestido branco e véu de noiva, as mulheres sentadas em fileiras se espantam, riem e depois choram. As emoções são contidas: uma perna balançando, o apertar das próprias mãos, dedos que sustentam o rosto. A manhã começou com os olhos atentos à Valsa nº 6, de Nelson Rodrigues, quem elas mal fazem ideia de quem seja. É a primeira vez que veem algo teatral quebrar os muros, passar pela segurança para contar uma história tão próxima delas, mostrar que ainda há vida.
RESUMO
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A peça teatral "Valsa nº 6", de Nelson Rodrigues, foi apresentada no Estabelecimento Penal Feminino Irmã Zorzi, em Campo Grande, emocionando detentas ao abordar temas como violência e feminicídio. A atriz Tauanne Gazoso interpretou Sônia, única personagem da obra, em apresentação para 17 mulheres. O projeto "A Valsa por lugares esquecidos" realizou cinco sessões em presídios femininos da capital, alcançando cerca de 150 detentas. A iniciativa busca democratizar o acesso à arte em espaços marginalizados, provocando reflexões sobre violência contra mulheres e transformação social através do teatro.
Ali, no Estabelecimento Penal Feminino Irmã Zorzi, a peça consagrada do dramaturgo que virou o teatro brasileiro de ponta-cabeça é vista pelos invisíveis. A estranheza diante do monólogo logo dá espaço à curiosidade, à vontade de saber o que acontece com a personagem que fala sozinha e tem lembranças das violências que viveu no passado.
As falas corridas e os pensamentos embaralhados confundem muitas das mulheres que estiveram na plateia nesta segunda-feira (27).
Débora assiste na primeira fileira. Quando aparece a memória de uma criança na peça, uma das mãos limpa os olhos discretamente, mas as lágrimas insistem em cair. Ela foi condenada a 12 anos de prisão. Para ela, o sentimento em ver a atriz encenar o afeto a faz lembrar dos próprios filhos do lado de fora das grades. O peso do que a levou ali não sai, mas a saudade dos seus também maltrata diariamente.
“Foi muito bom, eu amei, até chorei. É muito lindo. Meu irmão sempre faz teatro na igreja e é a primeira vez que assisto isso aqui. Não vejo minha família. Minha mãe faleceu, meus filhos estão lá fora. É importante ter mais, assistir essas coisas. Me emocionei na parte da criança porque a gente lembra, sinto muita falta deles. Não é fácil ficar aqui dentro, não desejo para ninguém. Por isso me emocionei.”
Em certo momento, a atriz se senta ao lado delas, e algumas se viram incrédulas pelo ato simples. A história nada mágica termina em tragédia, assim como a vida de muitas. Mesmo que o monólogo não seja escrachado, lágrimas aparecem ao descobrir que Sônia, a protagonista e única personagem, morre apunhalada pelas costas pelo médico da família. Na época, ela ainda era uma adolescente.
Para quem nunca viu, as cenas acontecem entre memórias confusas de Sônia, que mistura infância, erotismo, medo e morte, tentando entender o que aconteceu com ela. A peça alterna entre inocência e perturbação, revelando uma mente dividida entre o real e o imaginário.
Foi justamente nesse ponto que Vanessa se atentou à história. Para ela, estar em um presídio é lidar com a imaginação e as vozes internas. Ela conta que muitas mulheres alegam ouvir e ver coisas.
“Mostra a realidade de muitas meninas. O fato de ela escutar as vozes dela mesma dá muita inspiração para pensar na vida de um modo melhor. A gente fica presa aqui, mas pode pensar em não tirar a própria vida, tirar os pensamentos de ansiedade. Muita gente fica falando que está ouvindo vozes, vendo coisas. Isso são coisas da nossa própria cabeça, então ajuda.”
Andressa foi condenada a 8 anos de detenção, é mãe de 5 filhos e avó de 2 netos. O teatro em si não é novidade, mas o jeito de contar a história sim. Essa foi a primeira apresentação que ela viu no presídio.
“Já tinha visto a peça, mas não assim. É a primeira aqui. Lá fora vi na época da escola, a gente participava muito, mas isso faz muito tempo. Um dia quero levar eles para o teatro. Eles nunca viram, não temos convivência com essas coisas.”
Ao longo dos 40 minutos de peça, os pés e pernas agitadas se aquietam. Após a apresentação, perguntas à atriz e olhares de satisfação. O projeto 'A Valsa por lugares esquecidos' foi apresentado também no Estabelecimento Penal Feminino de Regime Semiaberto e Albergada de Campo Grande.
Ao todo, foram cinco sessões, com média de 300 detentas que assistiram às apresentações. Nesta segunda-feira, 17 mulheres estavam presentes no pequeno auditório do Irmã Zorzi.
A atriz Tauanne Gazoso explicou que ter se apresentado nos locais foi uma experiência profunda e diferente pelo contraste social. Para que ela pudesse se encenar nos presídios, foi preciso adaptar a peça.
“Cara a cara com essas histórias não tem como a gente não ser tocado. Estou o tempo todo interagindo e trocando com elas. O teatro é isso: troca de energia e sentimentos. Da mesma forma que elas se emocionam com a peça, eu estou me emocionando com elas. Eu me vejo nessas mulheres também.”
Ela explica que o feminicídio que a peça retrata, de 1951, é de quando ainda nem sequer se imaginava que haveria uma palavra que definisse a morte de mulheres simplesmente pelo fato de serem mulheres.
Confira a galeria de imagens:
“Isso é o tema principal, mas dentro da peça existem outros conflitos e a personagem vai revelando as lembranças e compartilhando com o público. Não é uma peça linear, mas percebi que todas compreenderam perfeitamente. Quando ela está ali menina, na adolescência [...] é uma personagem que transita entre outros. Tivemos que adaptar a peça porque ela é feita para o palco, e queríamos que fosse apresentada igual aqui, com a mesma qualidade. Então encaramos o desafio. Foi a parte mais complicada.”
Para o produtor da peça e idealizador do projeto, Halisson Nunes, o adereço que a peça ganha no nome 'A Valsa por lugares esquecidos' é justamente uma provocação à sociedade.
“A gente fez um levantamento e entendeu que a valsa é um estilo de dança elitista, e só quem tinha acesso eram pessoas da alta burguesia. Pensando nisso, levamos ela para lugares onde não é acessível. Confesso que não é tão simples entrar nos presídios como a gente imaginava, mas o nosso objetivo sempre foi esse e lutamos até o final para conseguir trazer para cá. A gente sabe que a arte é capaz de transformar a vida.”
Ele ressalta que o resultado foi melhor do que o imaginado e que quebrou muitos receios que tinha sobre esses espaços.
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