André saiu do armário com HIV para que ninguém deixe de viver
Num país que prefere fingir que não vê a ciência, André decidiu falar sem medo da sua sorologia
André Tristão tem humor de sobra. Daqueles que desarmam a conversa antes mesmo de ela ficar pesada. Mas basta ele dizer, com a naturalidade de quem fala “pego um café e já volto”, que vive com HIV, para o mundo lembrar que ainda sabe torcer o nariz. Não é o vírus que causa esse reflexo, é o imaginário. Um tipo de caretice automática, velha e insistente, que sobrevive mesmo depois de uma década de avanços, tratamento gratuito, indetectabilidade e ciência gritando o óbvio: viver com HIV hoje é, na prática, viver.
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Só que “viver” não é uma palavra neutra quando a sociedade faz questão de empurrar algumas existências para a sombra. Por isso André diz que precisou “sair do armário de novo”. Não porque o silêncio o adoecia, como se ele estivesse desmoronando por dentro. Ele é direto: “Não me adoece. Viver no silêncio não me adoecia exatamente”. Mas a experiência de esconder, de calcular o que dizer, para quem dizer, e o que pode acontecer se alguém descobrir, cria uma espécie de agonia constante. “Dá uma leve agonia ficar pensando que você precisa ficar escondendo algo de alguém. Sensação horrível. Você tem que ficar escondendo. Isso é horrível.”
O que empurrou André para fora desse segundo armário não foi um impulso de “militância” performática ou a vontade de transformar a sorologia em identidade. Foi luto. Foi ver gente ao redor morrendo não por falta de tratamento, mas por falta de coragem, de rede, de acolhimento. “O que mais me pegou mesmo na real é essa coisa de pessoas à minha volta morrendo porque elas viviam dentro dessa coisa do estigma”, conta. Ele fala de um conhecido que decidiu não se tratar. “Ele resolveu morrer. Ele não quis fazer o tratamento por opção.” E aí aparece a frase que fica reverberando como uma pergunta sem resposta: e se alguém tivesse tido acesso à história dele antes? E se, com mais gente falando, mais gente vivendo, alguém tivesse se sentido menos sozinho? “Se eu saísse do armário antes… eu teria ajudado essa pessoa a sobreviver.”
É aí que a conversa muda de eixo: o drama não está em “ter HIV”. Está em como o mundo reage a isso. André descreve um tipo de pena atravessada, meio nojo, meio ignorância, como se a pessoa soropositiva fosse automaticamente um aviso ambulante de tragédia. “As pessoas falam assim: ‘Ai jura’, olha para você com uma cara… de ‘ai coitado’. Coitado nada, tô vivo, tô saudável.” Ele ri, mas não é riso leve. É riso que fura o absurdo. “Uma menina na rua falou: ‘Você tá bem?’ Eu falei: ‘Tô ótimo’. Tô saudável, tô indo na academia, tô feliz, tô trabalhando.”
A cena que ele guarda como resposta mais acolhedora veio da mãe, enfermeira sanitarista, habituada ao tema, mas principalmente dona de um gesto simples que desmonta o pânico. Quando André contou, ela não fez discurso, não dramatizou, não transformou a casa num velório. Ela fez uma pergunta cotidiana: “Onde você quer almoçar?” Era um recado sem frase pronta: você continua aqui. Você continua sendo meu filho. A vida continua, e eu vou ficar do seu lado enquanto ela continua.
O caminho dele também foi direto, como se a pressa de viver falasse mais alto do que a tentação de se esconder. “No dia seguinte eu tava na médica”, diz. Ele lembra que sofreu nas duas semanas antes do teste, porque ninguém quer receber um diagnóstico. Mas depois que veio a confirmação, a vida virou protocolo de cuidado, e não sentença. Tratamento, exames, acompanhamento. Em um mês, indetectável. Já se passaram 10 anos. E, para ele, isso deveria bastar para encerrar metade do preconceito: indetectável significa intransmissível. Só que a outra metade do preconceito não quer saber de ciência, ela prefere o susto.
Se pudesse falar com alguém que acabou de receber o diagnóstico e tem medo de contar para o mundo, André não empurra heroísmo. Ele reconhece o direito ao sigilo. “As pessoas têm o direito de permanecer em silêncio em relação à sorologia delas”, diz. Mas puxa para o essencial: conversar com alguém, buscar ajuda, não transformar segredo em buraco. “Não é um bicho de sete cabeças, hoje em dia é um comprimido por dia.” E repete, porque o básico precisa ser repetido até virar cultura: levanta a cabeça, respira, não tenha medo de viver. “Viver é muito mais legal do que cair em um buracão.”
Ele faz questão de dar nome ao que funciona: SUS. A regularidade de exames, a medicação garantida, a possibilidade real de estabilizar a saúde e seguir. E também dá nome ao que mata: estigma. Não é “revelar” ou “não revelar” que define destino. É revelar sem acolhimento, esconder sem tratamento, sobreviver sem rede. O perigo está quando o preconceito convence alguém de que buscar cuidado é vergonha. “O grande lance é não revelar e não tratar. Por isso, pelo preconceito, pelo estigma.”
André não romantiza. Ele não diz que é fácil. Só diz que é possível, e que a parte mais difícil, na maioria das vezes, não está no corpo. Está no olhar do outro. Por isso ele fala tanto. Por isso ele insiste. Por isso ele não tem preguiça de romper o silêncio, mesmo quando o mundo faz cara feia. Porque, se um dia o HIV virou um vírus controlável, a sorofobia ainda não virou uma vergonha social controlável. O problema, como André deixa claro, ainda é o preconceito.
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