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Reportagens Especiais

Modernização que apaga história deixa para trás bairros que surgiram com o trem

Imóveis abandonados, lixo e obras paradas marcam regiões que guardam a origem da Capital

Por Cassia Modena | 26/08/2025 07:35
Modernização que apaga história deixa para trás bairros que surgiram com o trem
Modernização que apaga história deixa para trás bairros que surgiram com o trem
Monumento Cabeça de Boi ao lado da bandeira de Campo Grande (Foto: Henrique Kawaminami)

A tentativa de tornar Campo Grande sempre uma “coisa nova” numa busca por modernização a todo custo tem sacrificado memórias e relegado os bairros mais antigos ao abandono. A historiadora e professora Lenita Calado vê assim a relação entre o passado e o presente da Capital de Mato Grosso do Sul. Nos espaços mais antigos, faltam serviços públicos e preservação de memórias.

RESUMO

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A busca pela modernização em Campo Grande tem resultado no abandono de bairros históricos e no apagamento de memórias importantes da cidade. Segundo a historiadora Lenita Calado, a tendência de demolir e construir novos espaços, privilegiando interesses imobiliários, tem prejudicado a preservação da história local. Os bairros Amambaí, Cabreúva e a comunidade Tia Eva, que surgiram com a chegada da estrada de ferro, enfrentam problemas como falta de manutenção em espaços públicos, insegurança e carência de serviços básicos. Monumentos históricos como o Cabeça de Boi, a antiga rodoviária e a Praça do Coreto necessitam de revitalização, enquanto o Centro de Belas Artes permanece inacabado há mais de 30 anos.

“Sempre foi mais fácil para os políticos campo-grandenses decidirem derrubar uma parte da cidade e construir uma coisa nova do que preservar”, começa Lenita. Para ela, esse processo priorizou os interesses imobiliários, enquanto “foram dando volta na história da cidade, que busca a modernidade a todo custo, mas não preserva o que tem”.

Além da necessidade de resgate do que está sendo apagado pelo tempo, esses lugares demandam o término de grandes obras que caminham a passos lentos: a revitalização da antiga rodoviária e o Centro de Belas Artes.

Modernização que apaga história deixa para trás bairros que surgiram com o trem
Historiadora Lenida Calado é autora do livro "A invenção de Campo Grande Capital" (Foto: Arquivo pessoal)

Amambaí

Um dos afetados é o primeiro projetado em Campo Grande, o Amambaí, que nasceu em torno da estrada de ferro e do centro de comércio e serviços que se formou a partir dela.

Exemplos de marcos desconfigurados no bairro e citados pela historiadora são o monumento Cabeça de Boi e a antiga rodoviária. A Praça Cuiabá (ou Praça do Coreto) permanece, porém, mais como motivo de preocupação para os moradores do que como vestígio do passado.

Muito lixo se acumula ao redor do coreto de estilo art déco, o mesmo que serviu de palco para as primeiras apresentações culturais da cidade que ainda nem tinha status de capital. Além disso, a praça hoje é o ponto procurado por dependentes químicos que se concentram no quadrilátero da antiga rodoviária e imigrantes. Ali eles tomam banho “de cano” e buscam água em galões para levar até uma ocupação no Centro.

Modernização que apaga história deixa para trás bairros que surgiram com o trem
Lixo toma conta de todas as laterais do coreto (Foto: Henrique Kawaminami)

Bancário aposentado que mora há 60 anos no Bairro Amambaí e há 45 anos em frente à Praça Cuiabá, José Orlando é quem faz o relato sobre o uso da praça feito atualmente. Ele e os vizinhos sempre reclamam da situação à prefeitura e comemoram quando tem alguma movimentação cultural por lá.

“A cada dois meses tem o pessoal do rock tocando aí e esses dias teve uma reunião das pessoas LGBT. A gente acha muito bom quando ocupam a praça. Precisa de movimento”, diz.

Orlando lamenta que o bairro esteja tomado por placas de vende-se e aluga-se, apesar de ser 100% asfaltado, ter saneamento básico e ser de acesso central. Ele espera que o Amambaí recupere um pouco do prestígio que tinha quando a revitalização da antiga rodoviária for terminada. As obras começaram em 2022 e estão com 55% do cronograma completo, segundo a prefeitura. A previsão de entrega é até o fim deste ano.

 “A melhor época foi quando Lúdio Martins Coelho era prefeito, na década de 1980 e no início dos anos 1990”, fala. A memória de Orlando vai longe.

Modernização que apaga história deixa para trás bairros que surgiram com o trem
Kethy Suane e a família pagam pouco no aluguel no Bairro Amambaí (Foto: Henrique Kawaminami)

A cuidadora de idosos Kethy Suane, 36, mora há um mês com o marido e dois filhos numa casa de três quartos perto da antiga rodoviária. A família paga R$ 500 mensais de aluguel, um valor mais baixo do que a média nos bairros periféricos da Capital. Eles se mudaram após a residência ser depredada por dependentes químicos e passar por uma reforma.

O esposo de Kethy, que trabalha como segurança em uma empresa privada, conseguiu manter os usuários longe de lá. “De vez em quando eles brigavam aqui na frente e ficavam na calçada, mas pararam de aparecer. Estamos gostando de morar aqui, é perto da casa da minha família e do Centro”, ela fala.

A moradora não conhece a história do já centenário Bairro Amambaí, exceto pela lenda da "casa da santa" que fica na rua onde está morando — é sobre uma garotinha morta violentamente, que começou a receber homenagens, orações e pedidos de milagres.

Modernização que apaga história deixa para trás bairros que surgiram com o trem
Tapumes, pixações, comércios fechados e casas abandonadas em trecho próximo à antiga rodoviária (Foto: Henrique Kawaminami)

Cabreúva

Próximo ao Amambaí, o Cabreúva também nasceu em volta da linha férrea. Segundo Lenita, antigamente aquela área tinha várias chácaras onde imigrantes japoneses de Okinawa moravam e plantavam o que vendiam na primeira feira de Campo Grande, montada onde hoje fica o estacionamento do Mercadão Municipal.

Os antigos trilhos foram retirados e foi construída a Orla Morena, onde os moradores agora aproveitam para fazer caminhadas e levar as crianças num pequeno parquinho. Virou também o corredor comercial e gastronômico do bairro.

Beneficiária do BPC (Benefício de Prestação Continuada), Maria Luiza Oliveira, 63, conta que mora há três meses no Cabreúva. Ela também se incomoda com a presença dos dependentes químicos ali e pede mais atenção à Orla. “Todos os dias venho caminhar aqui. É um lugar muito gostoso, mas falta uma limpeza, uma pintura”, diz.

Modernização que apaga história deixa para trás bairros que surgiram com o trem
Orla Morena precisa de manutenção e pintura, diz frequentadora (Foto: Henrique Kawaminami)

Um dos destaques históricos do Cabreúva são as casinhas antigas. A dona de casa Jocilene Soares, 55, mora numa que tem seis décadas, mas ficou bem diferente depois de reformada.

Muros altos, cercas elétricas e coberturas do telhado ao portão também fazem parte do processo de padronização que essas residências passam. “Aqui ficou mais perigoso nos últimos anos. Um usuário entrou na casa do vizinho, levou os fios e ele também teve que reformar. Não tem jeito”, conta a moradora.

O Centro de Belas Artes, espaço cultural que poderá servir à preservação da história da cidade, teve as obras iniciadas no bairro há mais de 30 anos. A professora elogia uma ideia que constava no projeto inicial. “Atrás dele haveria uma réplica da primeira estação de trem em Campo Grande, deslocada do lugar original, mas interessante. Só que aí começaram as paralisações e os políticos foram deixando e não se responsabilizando. O Centro de Belas Artes seria maravilhoso, mas ainda não acabou”, afirma. Uma licitação foi aberta pela prefeitura para uma primeira fase da retomada  e já há uma empresa vencedora. Por enquanto, não há gente e maquinário trabalhando.

Modernização que apaga história deixa para trás bairros que surgiram com o trem
Centro de Belas Artes inconcluso há mais de 30 anos (Foto: Osmar Veiga)

Seminário - Comunidade Tia Eva

O quilombo Tia Eva fica dentro do Seminário. Não é bairro, mas tem o tamanho de um e é o que tem mais gargalos na comparação com o Amambaí e o Cabreúva.

Por outro lado, o lugar é um dos poucos em Campo Grande que preserva o que não é uma estrutura palpável e ficou no passado nos grandes centros: proximidade entre os vizinhos, crianças brincando na calçada e a comunidade se compreendendo como uma unidade.

Lenita explica que, diferente dos outros bairros formados em função do trem e que ficam um ao lado do outro, a comunidade fica mais distante porque é anterior à chegada da estrada de ferro. Outros fatores que justificam a origem naquele ponto são a busca por proteção e a preferência por ficar próxima ao Córrego Segredo para facilitar o acesso à água. A fundadora, Eva Maria de Jesus, era uma ex-escravizada.

Modernização que apaga história deixa para trás bairros que surgiram com o trem
Igreja São Benedito segue fechada por risco de teto desabar (Foto: Henrique Kawaminami)

Um projeto de preservação de sua história está em andamento: a reforma e recuperação da Igreja de São Benedito. Outra medida anunciada para apoiar moradores, comerciantes e valorizar a cultura negra é a criação de um corredor gastronômico e cultural.

O corredor é o sonho do trineto de Eva, Eurides Antônio da Silva, conhecido como Bolinho. “A gente sempre quis fazer igual ao Pelourinho na Bahia: com cultura afrobrasileira pulsando, diversos projetos culturais, cursos, gastronomia”, conta.

Michel, o pai de Bolinho, foi o criador da primeira associação de moradores da comunidade. Aos 90 anos, o ex-presidente lembra com detalhes a dificuldade para conquistar, junto aos vizinhos, o acesso à água encanada, energia elétrica, uma escola e asfalto. "São conquistas muito recentes em relação à antiguidade da comunidade", conta o filho.

Modernização que apaga história deixa para trás bairros que surgiram com o trem
Moradora diz que todos os avanços na Tia Eva são muito recentes e que comunidade precisa de mais uma série de coisas (Foto: Henrique Kawaminami)

A dona de casa Elizabeth Martins, 55, é vizinha da família. Ela enumera as necessidades atuais da Tia Eva, começando por um berçário. A Emei (Escola Municipal de Ensino Infantil) local não recebe bebês, apenas crianças maiores. "As mães precisam trabalhar, como faz?", questiona.

É unânime entre os três moradores que precisa haver mais espaços de lazer e cultura. Por enquanto, as duas únicas opções são um salão social e um campinho de futebol de "terrão". A comunidade também quer uma melhora na unidade de saúde local e espera que a que está em obras no bairro vizinho, a Vila Nasser, seja concluída rapidamente.

Demanda entre as que mais se arrastam ao longo dos anos é a regularização fundiária da Comunidade Tia Eva. Os moradores vivem na insegurança até hoje, embora sejam descendentes de alguns dos primeiros a chegar em Campo Grande.

Retorno da prefeitura

A assessoria de imprensa da Prefeitura de Campo Grande respondeu em nota às demandas citadas nesta matéria.

  • Dependentes químicos e pessoas em situação de rua
    "A Secretaria Municipal de Assistência Social informa que a Rede de Assistência Social do município desenvolve continuamente um trabalho social de abordagem por meio do Serviço Especializado em Abordagem Social para pessoas em situação de rua, ofertando os serviços e acolhimentos da Rede de Assistência Social do município. Na região da Orla Morena, as equipes realizam abordagens sociais diárias, seja por busca ativa ou por solicitações da população. Durante as abordagens, os técnicos realizam escuta qualificada, coleta de dados, prestação de informações, oferta dos serviços e encaminhamentos Os usuários que aceitam o serviço são encaminhados para os equipamentos de acolhimento da Secretaria. É importante frisar que as equipes do serviço especializado retornam ao local diariamente para oferecer os serviços aos usuários que recusam as abordagens. É importante pontuar que situações de furtos e demais crimes devem ser comunicados à Segurança Pública, já que não são atribuições da Secretaria. O Serviço Especializado em Abordagem Social, atua por meio das equipes, 24 horas por dia, nos sete dias da semana, realizando abordagens em todas as sete regiões da Capital. As ações são realizadas por meio de buscas ativas, denúncias pelos dois celulares e mapeamento das regiões conforme as demandas, a fim de ofertar os serviços às pessoas em situação de rua. Para denunciar pessoas em situação de rua, basta ligar para os telefones (67) 99660-6539 99660-1469 e 156. Frisamos ainda que a Política de Assistência Social é desenvolvida de forma integrada com as demais políticas públicas existentes na gestão municipal, oferecidas pela Secretaria Municipal de Saúde, Fundação Social do Trabalho, que atende com vagas de trabalho e Emha (Agência Municipal de Habitação e Assuntos Fundiários), que atua na realização de cadastro para programas habitacionais do Governo Federal voltados à essa população".

  • Conclusão da revitalização da antiga rodoviária
    "A obra de revitalização do terminal Heitor Eduardo Laburu está com 55% do cronograma executado. Entre os serviços que ainda faltam executar e que demandam certo tempo é a fachada na parte da Rua Joaquim Nabuco, onde funcionarão a Fundação Social do Trabalho e a Guarda Civil Metropolitana. Será feita em brise, dando um visual moderno e que garante aos frequentadores, ambiente mais agradável. Brise é um dispositivo arquitetônico instalado em fachadas de edifícios para controlar a entrada de luz solar e reduzir o calor. Uma opção versátil que combina funcionalidade e estética, oferecendo conforto térmico e um visual moderno".

  • Limpeza e manutenção na Orla Morena
    "A Secretaria Municipal de Infraestrutura e Serviços Públicos informa que faz a limpeza frequente da Orla Morena e também algumas intervenções pontuais para garantir ambiente adequado para os usuários, como a conservação das áreas de caminhada e ciclovia. A Secretaria irá intensificar as ações no local".

  • Berçário na Tia Eva
    "A Prefeitura de Campo Grande, por meio de suas secretarias informa: a Escola Municipal de Educação Infantil Tia Eva atende atualmente crianças de 3 a 5 anos de idade, conforme estabelecido pela legislação educacional. A Secretaria Municipal de Educação tem ciência da demanda da comunidade por vagas para bebês e estuda a viabilidade de construção de uma nova unidade na região. Vale destacar que a gestão tem priorizado a conclusão de obras paralisadas ou inacabadas, garantindo a entrega de novos espaços à população antes de iniciar novas construções".

  • Regularização fundiária na Tia Eva
    "A Emha (Agência Municipal de Habitação e Assuntos Fundiários) informa que ainda não iniciou o processo de regularização fundiária na área onde está localizada a Comunidade Tia Eva. A Agência irá protocolar o requerimento necessário para incluir a área em seu cronograma e, a partir disso, dará início às etapas e aos estudos técnicos que compõem o processo de regularização".

  • Unidade de Saúde na Tia Eva
    "A Secretaria Municipal de Saúde informa que a USF (Unidade de Saúde da Família) São Benedito está funcionando normalmente, garantindo o atendimento à comunidade da região. A Sesau esclarece ainda que a USF Vila Nasser teve sua reforma concluída e o prédio já foi entregue, encontrando-se em fase final de trâmites administrativos para retomada das atividades no local. Até a reabertura, a unidade de referência é a USF Estrela do Sul".

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