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A culpa não é das árvores

Silvia Rahe Pereira (*) | 17/10/2021 13:30

Os acontecimentos recentes de tempestades de poeira com fortes ventos ocorridos em Campo Grande e outros 17 municípios de Mato Grosso do Sul colocaram holofotes sobre as árvores urbanas. Infelizmente, por alguns dias estas deixarão de ser lembradas como cartões-postal e motivo de celebração na capital para alcançarem o status de vilãs da história. Mas será que elas realmente o são?

O início desta história começa em notícias veiculadas há anos sobre as mudanças climáticas resultantes do aquecimento global, que achávamos tão distante da nossa realidade. Pois bem, a má notícia é que já estamos sentindo, neste momento, as suas consequências. Em julho deste ano nos deparamos com imagens de grandes enchentes causadas por tempestades intensas que atingiram áreas da Alemanha, Bélgica e Holanda, deixando um rastro de destruição e mais de 160 óbitos. Infelizmente, alguns cientistas preveem que esse tipo de evento pode se tornar muito mais comum. Estudos recentes indicam que as tempestades intensas poderão se tornar 14 vezes mais frequentes no continente europeu até o final do século por conta do aquecimento global.

E como nós aqui no Brasil estamos percebendo essas alterações? A situação mais recente nos remete às tempestades de poeira que ocorreram no final e setembro nos estados de São Paulo, Minas Gerais e Mato Grosso do Sul e novamente, na última sexta-feira, em nosso estado. Estas tempestades são raras no Brasil, mas muito comuns em outras regiões do mundo, onde são conhecidas como “haboob”. São causadas por temporais de chuva com ventos fortes que, ao entrarem em contato com o solo muito seco, encontram resquícios de queimada, poeira e vegetação seca. Essa combinação causa uma espécie de “rolo compressor” gigante de sujeira que pode chegar a até 10 quilômetros de altura, associada à ventania forte.

A Escala de Beaufort, concebida pelo meteorologista anglo-irlandês Francis Beaufort no início do século XIX, classifica a intensidade dos ventos de acordo com a velocidade e o poder de destruição. Ela varia entre grau zero e 12, sendo o grau zero atribuído à ventos calmos e o grau 12 à furacões, quando a velocidade do vento ultrapassa os 118 km/h. Em notícias veiculadas após o ocorrido na capital, relatou-se que as rajadas de vendo atingiram 94 km/h durante o evento da sexta-feira. Esta situação se enquadra no grau 10 da Escala Beaufort, que prevê como efeitos em terra, que árvores sejam totalmente arrancadas e possível dados estruturais em construções. Assim, a queda de tantas árvores em Campo Grande, muitas destas saudáveis, embora tenha sido uma situação inusitada para muitos, já era prevista desde o início do século XIX. Não obstante, um vendaval de 54 km/h é, normalmente, o valor utilizado como referência por seguradoras em sinistros em casos de danos ao patrimônio.

Por isso, me permitam responder à minha pergunta aqui mesmo, no meio do artigo. Não, a culpa não foi das árvores! E a maioria delas permaneceriam fornecendo os serviços ambientais à população por mais algum tempo, caso não tivéssemos passado por um evento climático extremo. E, será que se todas as pessoas conhecessem todos os benefícios da arborização, seriam capazes de ter menos medo e enxergariam que é mais vantajoso para a cidade manter e bem manejar a sua arborização? As florestas urbanas trazem diversos benefícios para nós, seres humanos, e estes já vêm sendo investigados por décadas.

Uma das causas das mudanças climáticas, tema do início dessa história, é a emissão dos gases de efeito estufa, entre eles o gás carbônico. Enquanto o mundo se organiza em convenções para firmar tratados para a redução da emissão desse gás, ele pode ser retirado da atmosfera pelo processo de fotossíntese realizado pelas árvores, que o fixa em seus constituintes, como tronco, galhos, folhas e raízes. Contribuem, também, para a redução da poluição sonora de ambientes urbanos de forma eficiente.

Poucas pessoas e gestores públicos sabem que o plantio de árvores em vias públicas pode ser um grande aliado na conservação de outra infraestrutura urbana (sim, a arborização é uma infraestrutura urbana!), a pavimentação asfáltica. Em estudo realizado em São José dos Campos (SP) encontrou-se que quando utilizadas espécies de médio e grande porte, havia uma economia de 58% do valor empregado na manutenção do asfalto. Nesse processo, a árvore tem papel duplo: ela, com sua sombra, garante menores temperaturas reduzindo a dilatação do asfalto e, com isso, diminuem-se as possibilidades de surgimento de fissuras e buracos. Por outro lado, suas copa e folhas, diminuem a velocidade da água da chuva, servindo como anteparo ao impacto direto das gotas de chuva que aumentam os buracos pré-existentes no asfalto.

Elas contribuem, ainda, para melhoria da qualidade do ar e da água, controle de enchentes, além do aumento do conforto térmico, reduzindo as chamadas “ilhas de calor” formadas em ambientes urbanos. Pesquisas feitas há várias décadas em locais de clima quente, como o Brasil, mostram que uma construção com árvores próximas pode gastar de 2% a 90% menos energia com refrigeração, além de diminuir a temperatura do ar em até três graus, sobretudo pelos efeitos do sombreamento, em comparação com construções sem árvores próximas. Existem também efeitos diretos do contato com áreas verdes na saúde da população, resultando na melhoria das funções cardiorrespiratórias e do sistema imunológico, além da redução do número de casos de depressão, estresse e ansiedade.

Portanto, uma árvore bem plantada, bem cuidada e bem manejada na cidade promoverá diversos benefícios. Cabe aqui ressaltar que todos esses serviços prestados pelas árvores urbanas podem ser valorados monetariamente, por metodologias já desenvolvidas por pesquisadores da área. Assim, a decisão da remoção de uma árvore deve ocorrer quando o risco e perda econômica resultante da queda da mesma suplante os benefícios que a sua manutenção proporciona.

Por fim, convido às pessoas que permanecem receosas em relação às árvores urbanas a lerem a recente publicação disponibilizada pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) “Verde urbano”. Nela, profissionais que atuam diretamente com as mesmas expõem de forma simples e didática as diversas faces deste tema apaixonante. Muitos dos capítulos me auxiliaram nessa missão de informar neste momento a população de Campo Grande, uma Cidade Árvore do Mundo, a capital dos ipês!

(*) Silvia Rahe Pereira é bióloga.

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