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O que comer quando você não quer comer?

Por Hamilton Roschel (*) | 11/12/2025 08:30

Quem diria que uma medicação para diabetes se tornaria o assunto mais comentado em rodas de conversa, programas de TV e redes sociais? O fenômeno Ozempic (e seus primos Wegovy, Mounjaro e outros agonistas do receptor GLP-1) transformou não apenas corpos, mas também o debate sobre obesidade, emagrecimento e, inevitavelmente, alimentação.

Afinal, o que acontece com a alimentação quando uma injeção semanal reduz drasticamente seu apetite, altera suas preferências alimentares e diminui o prazer associado à comida?

Essa não é uma pergunta hipotética ou futurista. Estamos diante de uma revolução farmacológica que já afeta milhões de pessoas e provavelmente afetará dezenas de milhões nos próximos anos. E como toda revolução, esta traz consigo não apenas benefícios, mas também desafios significativos, muitos deles relacionados à nutrição.

Em maio de 2025, um grupo de especialistas de diferentes sociedades científicas publicou um documento nomeado: Prioridades Nutricionais para Apoiar a Terapia com GLP-1 para Obesidade. Este estabeleceu diretrizes para abordar um problema que já se enfrenta na prática: como garantir uma nutrição adequada em pacientes usando medicamentos que reduzem drasticamente a ingestão alimentar?

Mas talvez antes de falarmos sobre as recomendações, é importante entender o paradoxo central: medicamentos como semaglutida (Ozempic/Wegovy) e tirzepatida (Mounjaro/Zepbound) funcionam, em parte, reduzindo significativamente o apetite e a ingestão calórica. Estudos mostram reduções bastante significativas nas calorias consumidas diariamente – muitas vezes o equivalente a pular uma refeição inteira.

Essa redução calórica é, obviamente, um dos mecanismos pelos quais esses medicamentos promovem a perda de peso. No entanto, quando a ingestão alimentar cai drasticamente, surge um risco real de deficiências nutricionais, perda excessiva de massa muscular e outros problemas relacionados à nutrição inadequada.

O consenso identificou algumas prioridades nutricionais para pacientes em terapia com GLP-1. A primeira delas enfatiza a importância de uma abordagem individualizada ao iniciar a terapia. Isso inclui avaliação nutricional completa antes de começar o medicamento, estabelecimento de expectativas realistas e educação sobre possíveis efeitos colaterais gastrointestinais.

Com a redução do apetite, muitos pacientes naturalmente diminuem o tamanho das refeições ou pulam refeições inteiras, o que pode levar a uma ingestão inadequada de nutrientes essenciais.

Refeições menores e mais frequentes poderiam ajudar a maximizar a ingestão nutricional ao longo do dia. Essa estratégia também pode ajudar a gerenciar os efeitos colaterais gastrointestinais, como náuseas e desconforto abdominal, que são comuns com esses medicamentos. Outra recomendação do documento faz ênfase à adequação da ingestão de proteínas, recomendando valores de ingestão significativamente mais altos (entre 1,2 a 1,6 gramas de proteína por quilograma de peso corporal ideal por dia) que a recomendação padrão (0,8g/kg/dia). Estudos mostram que pacientes em terapia com GLP-1 frequentemente perdem não apenas gordura, mas também massa muscular. Um estudo recente mostrou que aproximadamente 40% do peso perdido com semaglutida era massa magra, o que inclui músculos. A revisão da quantidade de proteínas ingeridas poderia ajudar a minimizar esse efeito.

O documento sugere ainda, ingestão de alimentos ricos em fibras para ajudar a retardar o esvaziamento gástrico, melhorar a tolerância alimentar e promover a regularidade intestinal. Neste sentido, a hidratação adequada é também crucial para esses pacientes, não apenas para o bem-estar geral, mas também para ajudar a gerenciar efeitos colaterais como constipação e para compensar a redução na ingestão de líquidos através dos alimentos.

Com menos espaço para calorias, cada mordida conta. O documento enfatiza a importância de maximizar a densidade nutricional dos alimentos consumidos de forma a se obter o máximo de nutrientes por caloria. Isso significa escolher alimentos minimamente processados, ricos em vitaminas, minerais e fitoquímicos, por exemplo. O documento também enfatiza fortemente a importância da atividade física regular, particularmente o treinamento com pesos, de forma a preservar a massa muscular durante a perda de peso.

A última prioridade aborda uma questão crucial: o que acontece quando o paciente interrompe o medicamento? Sem um plano de transição cuidadoso, o reganho de peso é praticamente garantido.

Resta claro, portanto, que esses medicamentos não representam a cura da obesidade. Quando interrompidos, os mecanismos biológicos que promovem o reganho de peso entram em ação, requerendo estratégias nutricionais e comportamentais para a manutenção do peso perdido.

As recomendações do consenso são cientificamente sólidas, mas sua implementação enfrenta desafios práticos significativos. O acesso maciço a um suporte nutricional parece algo bastante longe de ser atingido. Mesmo no EUA, menos de 20% dos pacientes em terapia com GLP-1 recebem aconselhamento nutricional profissional, segundo um estudo recentemente publicado.

Os medicamentos GLP-1 são caros. Adicionar o custo de alimentos de alta qualidade e consultas com especialistas pode tornar essa abordagem inacessível para muitos, em especial para aqueles expostos a barreiras financeiras e sociais, enfatizando um quadro de inequidade no acesso à saúde. Ainda, é importante reconhecer que uma proporção significativa de usuários de GLP-1 os obtém para fins estéticos, muitas vezes sem supervisão médica adequada, o que faz com que para esses usuários, as recomendações nutricionais sejam ainda mais cruciais, embora, paradoxalmente, eles sejam os menos propensos a receber orientação profissional.

Essa nova classe de drogas representa uma mudança de paradigma no tratamento da obesidade e, consequentemente, na abordagem nutricional para perda de peso. Pela primeira vez, temos intervenções farmacológicas que efetivamente reduzem o apetite e a ingestão alimentar, criando um cenário inédito onde o desafio parece se mover da dificuldade em resistir à tentação de comer demais para a dificuldade de se garantir nutrição adequada quando se come muito menos.

No final das contas, esses medicamentos são ferramentas poderosas, mas não substituem os princípios fundamentais de uma alimentação saudável. No fim do dia eles podem até reduzir seu apetite, mas não garantem que você obtenha os nutrientes necessários para uma saúde ideal. E talvez essa seja a lição mais importante: mesmo na era dos medicamentos “milagrosos” para perda de peso, a nutrição e o cuidado individualizado e humanizado em saúde ainda importam – e talvez mais do que nunca.

(*) Hamilton Roschel é coordenador do grupo de pesquisa em Fisiologia Aplicada e Nutrição da Escola de Educação Física e Esporte e da Faculdade de Medicina da USP.

 

Os artigos publicados com assinatura não traduzem necessariamente a opinião do portal. A publicação tem como propósito estimular o debate e provocar a reflexão sobre os problemas brasileiros.