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O agente secreto, um filme memorial!

Por Miguel Gally de Andrade (*) | 09/11/2025 08:30

Com uma estratégia de marketing impressionante, tendo vencido inúmeros festivais e já indicado ao Oscar 2026, O agente secreto finalmente chega aos cinemas do Brasil em sua pré-estreia. Finalmente!

Foi uma grande homenagem a Recife, sem dúvida, uma homenagem que talvez somente o cinema poderia fazer. A música deixaria de fora as imagens visuais. A fotografia e a pintura deixariam de fora o movimento alucinado da cidade. O teatro e as artes performáticas conseguiriam muito, mas seria difícil acomodar aqui tantas narrativas simultâneas, tratadas quase como orgânicas no filme, cuja edição ficou realmente imbatível. Isso porque, embora bastante complexa, a história cheia de camadas vai se esclarecendo sem grandes esforços, mesmo sem nenhuma linearidade óbvia. As artes visuais, sonoras e a arquitetura certamente conseguiriam criar um espaço mais real e experiências mais fortes, no sentido de nos aproximar do caos Recife, mas a imersão na sala escura do cinema consegue também nos teletransportar para o Recife. A poesia escrita ou oral nos faz entender melhor a cidade e vivê-la, mas vista como um estado de espírito está no filme do começo ao fim. Uma homenagem que somente o cinema poderia fazer, sim, e muito provavelmente somente Kleber Mendonça Filho, pensando em ser Recife seu tema maior há anos: Retratos fantasmas (2023), Aquarius (2016), O som ao redor (2013), Recife Frio (2009), entre outros.

O agente secreto se passa em 1977 e conta a história de um professor da UFPE ameaçado de morte por desenvolver tecnologia nacional numa época de entreguismo das riquezas do país e de perseguição das grandes mentes que não se rebaixaram à ideologia fascista vigente. É um roteiro de ficção, mas que foi verdade para muitos. Parecia ficção também para o protagonista que ele pudesse ser morto, ele não parecia acreditar que realmente fossem matá-lo porque desafiou um grande empresário infiltrado no serviço público, tal como um agente secreto a serviço dos seus próprios interesses, como ainda hoje trabalham muitos representantes do povo. Ele não acreditava nesse absurdo, como também não acreditaram Honestino Guimarães e sua esposa, que revelou isso em depoimento. A ficção e a verdade andam juntas no filme, mas nós, espectadores, sabemos de tudo, porque a ordem do empresário a matadores de aluguel era clara, matar com um tiro na boca, para calar o professor Armando de uma vez por todas.

Recife é uma cidade que mistura realidade e ficção o tempo todo, embora saibamos que essa não é uma exclusividade do Recife. De forma genial, o filme explora bem tudo isso, desde a história do tubarão que se conecta com a lenda da perna cabeluda, passando pela La Ursa e pelas bombas de água feitas com cano de PVC e chinela havaiana em brincadeiras de carnaval até as cenas surreais de uma delegacia fake improvisada para proteger o depoimento de uma grã-fina. Toda essa mistura entre ficção e realidade é a vida do Recife, um lugar que, por exemplo, por estar abaixo do nível do mar em vários pontos da cidade, se chover demais e a maré estiver alta, aí para tudo até a maré baixar... e as pessoas simplesmente vão conversar um pouco, reclamar do caos, fazer piadas, botar a rede social em dia, e isso não é ficção minha, mas bem que poderia ser. É sobre isso. É verdade, mas poderia ser ficção. É ficção, mas poderia ser verdade.

Fiquei muito feliz em ver a cidade em movimento, tal como era nos anos 1970, o cuidado com a estética do filme impressiona muito, as maçanetas douradas do Cinema São Luiz, a rua da Aurora mais calma, o rio Capibaribe sem lixo, o rótulo antigo dos pinguins da cerveja Antártica que mais pareciam os olhos de um caranguejo etc. Mas me perguntava ainda, o tempo inteiro, por que esse tema geral da ditadura ainda precisa ser mostrado, e por que o cinema?

Voltando para casa, apenas uma coisa me vinha à mente. É um trauma duro que ainda não foi devidamente tratado como história para todos, são poucos os monumentos e memoriais dedicados a um assunto tão forte e tão atual. Com um agravante, uma conjuntura política marcada por uma parcela da população de quase 30% que não aceita o espólio perverso e injusto da ditadura. A poucos metros do Cinema São Luiz, lugar de destaque dentro do filme, Miguel Arraes, então governador eleito de Pernambuco, com ideias socialistas, ou seja, um adversário político, um adversário ideológico, não um comedor de criancinhas, fake news/ficção consagrada da época... Ali bem perto da rua da Aurora, no Palácio do Campo das Princesas, foi ele talvez o primeiro preso político do regime fascista que se instalava no país, deposto já no primeiro dia do golpe militar, em 1º de abril de 1964. Sem ficção!

Junto com Ainda estou aqui (2024), O agente secreto (2025) complementa o trabalho recente do cinema em realizar o memorial possível no momento, isto é, oferecido pela arte do cinema num momento de ausência do Estado Democrático Brasileiro como garantidor direto de sua memória. Memorial necessário e de vasto alcance, porque muitos também irão ao cinema a partir de 6 de novembro de 2025. O alcance do cinema, portanto, tenta corrigir essa ausência de um memorial robusto sobre o que aconteceu no Brasil entre 1964-1985. Que muitos aproveitem para (re)ver suas posições sobre nossa história e parem de tratá-la como ficção!

(*) Miguel Gally de Andrade, professor de Estética & Filosofia da Arte e da Arquitetura no Departamento de Teoria e História em Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (UnB)

 

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