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Reportagens Especiais

Mato Grosso do Sul é caçula de três irmãos, cada um com seus sotaques e sabores

Houve um período em que o território incluía Rondônia e ocupava área que se estendia do Pantanal à Amazônia

Por Ângela Kempfer | 11/10/2025 07:45
Mato Grosso do Sul é caçula de três irmãos, cada um com seus sotaques e sabores
Mapa da província de Mato Grosso e estados limítrofes, no séc. XIX, ainda com Rondônia e MS

Muito antes de Mato Grosso do Sul começar sua história como estado, o mapa do Centro-Oeste brasileiro era bem diferente e muito maior. Houve um período em que Mato Grosso incluía Rondônia e ocupava uma área que se estendia do Pantanal à Amazônia, em uma linha reta de quase 2.000 quilômetros entre um extremo e outro.

RESUMO

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O estado de Mato Grosso do Sul, criado em 1977, é o mais jovem de três territórios que antes formavam uma única província. A divisão começou em 1943, quando Getúlio Vargas separou Rondônia, então Território Federal do Guaporé, de Mato Grosso. Cada região desenvolveu características próprias. Rondônia tem influência amazônica, com pratos à base de cupuaçu e tucupi. Mato Grosso manteve tradições sertanejas, com pequi e pacu. Já Mato Grosso do Sul incorporou elementos paraguaios e paulistas, destacando-se pela cultura do tereré, chipa e carne vermelha.

Com o tempo, as distâncias, os interesses econômicos e a necessidade de administrar melhor o território criaram três irmãos: Mato Grosso, Rondônia e Mato Grosso do Sul. Cada um tem sotaques, sabores e identidades próprios. Não havia como serem iguais, estando geograficamente tão distantes.

Em Rondônia, o cheiro é de cupuaçu e tucupi. Mesmo que o sujeito esteja derretendo, o caldo não sai do menu. O sotaque surge com tempero do Pará, salpicado pelo Nordeste, só que mais suave. A literatura explica que é como se todo mundo falasse sorrindo, em um sobe e desce de sílabas.

Em Mato Grosso, o sabor é de pequi e pacu. Há quem compare o jeito de falar à melodia da viola, em ritmo calmo, que cria pausas entre as palavras e arrasta um pouco a duração de cada fonema. Há um “r” leve e um “s” sibilante, principais marcas daquelas bandas.

Em Mato Grosso do Sul, o gosto é de carne vermelha, tereré e chipa. O sotaque é meio caipira, meio urbano, com um pé no Paraguai, outro em São Paulo e um "r" que joga a língua para o céu da boca e faz quem é de fora tirar sarro do nosso jeitinho caipira.

Mato Grosso do Sul é caçula de três irmãos, cada um com seus sotaques e sabores
Abertura da estrada de Ferro Madeira-Mamoré, responsável pelo desenvolvimento da região que hoje é conhecida como Rondônia (Foto: Arquivo Nacional)

Irmãos separados 

A primeira divisão ocorreu em 1943, quando o então presidente Getúlio Vargas criou o Território Federal do Guaporé, separando-o de Mato Grosso. A região, localizada ao norte, era estratégica por abrigar parte da floresta amazônica e por ter importância econômica durante a Segunda Guerra Mundial, especialmente por causa da produção de borracha.

Em 1956, o território recebeu o nome de Rondônia, em homenagem ao marechal Cândido Mariano da Silva Rondon, militar mato-grossense que instalou as linhas telegráficas e abriu rotas de comunicação pela Amazônia.

Era administrado diretamente por Brasília. Só em 1981, com a transformação em estado, Rondônia passou a eleger governador, deputados estaduais e senadores, ganhando os mesmos direitos políticos dos demais.

Hoje, a cultura rondoniense é marcada pela mistura de migrantes nordestinos, amazônidas e sulistas. As tradições incluem festas de boi-bumbá, arraiais juninos e uma culinária rica em peixes e ingredientes regionais, como o tambaqui assado, o tacacá e o pirarucu de casaca.

Mato Grosso do Sul é caçula de três irmãos, cada um com seus sotaques e sabores
As icônicas caixas d’água localizadas na praça central de Porto Velho (Foto: Ministério do Turismo)

Na capital, Porto Velho, o cenário é bem interiorano, inclusive quando o assunto é ponto turístico. Se por aqui o campo-grandense tira foto com a Maria Fumaça voadora na Calógeras, lá o povo para para tirar selfie na caixa-d'água.

Conhecidas como As Três Marias, as "icônicas" caixas d’água localizadas na praça central de Porto Velho foram construídas entre 1910 e 1912, com tanques metálicos importados de Chicago, cada um com capacidade para 200 mil litros. Instaladas na parte mais alta da cidade, abasteceram Porto Velho até 1957, utilizando apenas a força da gravidade para distribuir a água.

Para Mato Grosso do Sul, não há irmão mais diferente que Rondônia e quem trocou de endereço sabe bem disso.

Natural de Corumbá, o engenheiro eletricista Alysson Bernardes trocou o Pantanal pela Amazônia ao se mudar para Porto Velho (RO). Viveu anos em Campo Grande e se acostumou ao calor seco e às variações de temperatura; por isso, foi ainda mais difícil se adaptar ao clima e à rotina da capital rondoniense.

Mato Grosso do Sul é caçula de três irmãos, cada um com seus sotaques e sabores
Imagem aérea de Porto Velho, capital de Rondônia (Foto: Prefeitura de Porto Velho)

“Aqui, as estações do ano são divididas basicamente em verão e inverno amazônicos. O verão é um período de muito calor e o inverno, de muita chuva”, conta. Ele explica que a umidade por lá é tão intensa que “a gente tem de tomar cuidado até com as roupas, em determinadas épocas do ano, porque mofa mesmo: guarda-roupa, roupa, tudo. Teve uma vez em que fui de férias para Campo Grande e deixei a chave da casa com um colega, para ele vir, abrir e deixar o ar circular, mas ele acabou não vindo. Quando cheguei em casa, estava tudo mofado: sofá, guarda-roupas, roupas... tudo”, lembra.

Em Porto Velho desde 2001, ele diz que nunca percebeu grandes diferenças no sotaque, a não ser por um detalhe: “O pessoal achava engraçado quando a minha esposa puxava o ‘r’ lá na faculdade. Achava diferente, como acontece com o pessoal do interior daqui mesmo, de Cacoal e de Rolim de Moura, que também puxa um pouquinho o ‘r’ na pronúncia.”

Na culinária, Alysson conta que Porto Velho é marcada por uma mistura de influências. “Aqui há bastante influência do Norte. Você encontra tacacá, que é uma comida típica paraense, e também pirarucu de casaca, que é um prato amazonense. Há muita mistura e muito peixe, né? Peixe com molho de castanha, a antiga castanha-do-pará. Esse tipo de comida é bastante tradicional aqui.”

Ele observa, no entanto, que o interior do Estado tem hábitos diferentes e conta que o tereré já chegou por lá. “Do centro para o sul, as características já são do pessoal do Sul mesmo: muito churrasco e o pessoal toma mais tereré. Agora, em Porto Velho, você encontra algumas casas de tereré, mas, quando cheguei aqui, em 2001, não havia nenhuma. Quando eu falava que ia pegar erva, o pessoal até se assustava, achava que era outra coisa”, recorda, rindo. “Hoje, já está mais difundido. E, assim como eu, quando cheguei aqui, não conhecia açaí nem tapioca, que são coisas bem típicas daqui, aliás, de toda a região Norte.”

Outro traço que chama a atenção, segundo o engenheiro, é a rotina alimentar dos moradores da capital. “À noite, o pessoal gosta muito de caldos, então há muitas soparias, algo que eu não via em Campo Grande. E, no café da manhã, principalmente no mercado, o pessoal come comida forte, como mocotó, cuscuz com carne e charque. É algo comum aqui, mas que em outros lugares não é tão frequente.”

O berço original

Mato Grosso nasceu da corrida pelo ouro no início do século XVIII, quando bandeirantes paulistas chegaram à região em busca de metais preciosos. A descoberta do ouro no rio Coxipó, em 1719, levou à fundação de Cuiabá, que se tornou o primeiro núcleo urbano do oeste brasileiro. A partir daí, o território ganhou importância estratégica para Portugal, que ergueu fortes militares, como o de Coimbra e o Príncipe da Beira, para proteger a fronteira com a Bolívia.

Com o tempo, o ouro se esgotou e a economia se voltou à pecuária e à agricultura. No século XX, o marechal Cândido Rondon ajudou a integrar a região ao restante do país com as linhas telegráficas.

O atual Mato Grosso manteve a maior parte do território original e continua sendo o “tronco” de onde os outros dois estados surgiram. Sua cultura combina influências sertanejas, indígenas e pantaneiras, com destaque para danças como o cururu e o siriri, músicas tocadas ao som da viola e uma culinária baseada em peixes e frutos do Cerrado.

Entre os pratos mais tradicionais estão o pacu assado, a mojica de pintado, o arroz com pequi e a farofa de banana, receitas que traduzem o modo de vida das comunidades ribeirinhas e rurais.

Mato Grosso do Sul é caçula de três irmãos, cada um com seus sotaques e sabores
osse de Harry Amorim Costa e instalação do Governo de MS. Teatro Glauce Rocha - Campo Grande (1º de janeiro de 1979).

O caçula do trio

A segunda divisão veio em 11 de outubro de 1977, durante o governo de Ernesto Geisel, por meio da Lei Complementar nº 31, que criou oficialmente Mato Grosso do Sul. A instalação efetiva do novo estado ocorreu em 1º de janeiro de 1979, com Campo Grande escolhida como capital.

A separação foi resultado de um desejo antigo dos moradores do sul do antigo Mato Grosso, que enfrentavam grandes distâncias até Cuiabá e sentiam falta de investimentos regionais.

Com a criação do novo estado, surgiu também uma identidade própria, influenciada pelas fronteiras com o Paraguai e a Bolívia e pela presença de migrantes vindos do Paraná e de São Paulo.

A cultura sul-mato-grossense é marcada pelo tereré, pela chipa, pelo arroz carreteiro, pelo sobá e pela música sertaneja, herança da vida rural misturada à convivência urbana. A convivência entre influências rurais, fronteiriças e urbanas moldou hábitos, culinária e tradições, refletidos em pratos como arroz carreteiro, sobá e tereré.

A música sertaneja e festas populares reforçam o sentido de pertencimento à região, enquanto a população segue mantendo laços históricos com migrantes vindos do Paraná, São Paulo e demais estados, que ajudaram a formar o mosaico cultural sul-mato-grossense.

A história da assinatura que oficializou Mato Grosso do Sul é cercada de curiosidades. Em 11 de outubro de 1977, o então presidente Ernesto Geisel sancionou a Lei Complementar nº 31, mas a caneta usada para o ato até hoje é motivo de controvérsia.

Segundo relatos, o produtor rural Antônio Ferreira dos Reis, conhecido como Varanda, teria emprestado a sua Parker 51 ao presidente. Outras versões apontam que o responsável pelo instrumento foi Marcelo Miranda, então prefeito de Campo Grande. Independentemente da caneta, o ato marcou o início de uma trajetória de construção administrativa e política própria para o novo estado.

Nos primeiros anos, Mato Grosso do Sul enfrentou desafios para consolidar sua estrutura administrativa. Inicialmente, herdou 55 municípios, enquanto Mato Grosso ficou com 38. Ao longo das décadas seguintes, o caçula do Centro-Oeste ganhou 24 novos municípios, expandindo a oferta de serviços públicos, educação e infraestrutura urbana, e firmando sua posição estratégica no país.

Entre 1980 e 1985, o estado chegou a ter mais habitantes que Mato Grosso, com diferença superior a 200 mil pessoas, evidenciando a rápida ocupação do território sul-mato-grossense.

A economia do Estado também se consolidou com força, baseada principalmente no agronegócio. Em 2019, o PIB do Estado somava R$ 106,9 bilhões, com um PIB per capita de R$ 38,4 mil, enquanto Mato Grosso apresentava R$ 142,1 bilhões e R$ 40,7 mil per capita.

Apesar de menor em valores absolutos, Mato Grosso do Sul manteve crescimento consistente em setores como pecuária, agricultura e indústria, com destaque para a produção de grãos e carne, consolidando-se como polo econômico regional.

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