Pasta base: droga mais consumida pelas ruas é fácil de achar e difícil de largar
Derivada da cocaína, ela é mais barata e domina o consumo entre quem vive nas ruas

Nas ruas de Campo Grande, a dependência química, com seus tristes rostos e histórias, tem um ponto em comum: a pasta base. Derivada da cocaína, mas banhada por solventes que destroem os pulmões, ela dá uma "pancada" de dopamina. Mas o ciclo é mortal.
RESUMO
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A pasta base, droga derivada do refinamento da cocaína, é a principal responsável pela dependência química que mantém usuários em situação de rua no centro de Campo Grande e bairros próximos. Reportagem do Campo Grande News revela histórias de viciados, como um homem de 41 anos que luta contra o vício, enquanto outro jovem de 24 anos começou há três meses por influência de amigos. Especialistas destacam a necessidade de avaliação psicológica adequada e tratamentos prolongados para reduzir recaídas. A Polícia Militar reforça que o problema exige ações integradas entre saúde, assistência social e urbanismo, além do policiamento ostensivo nas áreas afetadas.
Se a sensação de bem-estar (ainda que enganosa) vem em segundos, o efeito acaba em minutos. Aí, é preciso mais dinheiro para comprar a droga, que custa de R$ 10 a R$ 20. Alimentando também o ciclo de crimes, como roubos e furtos.
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De oito pessoas abordadas pela reportagem do Campo Grande News, sete confirmaram fazer uso da pasta base. No Centro, na região da antiga rodoviária, um homem de 41 anos, que vive nas imediações desde a infância, conta que já tentou interromper o consumo dezenas de vezes.
“Isso é uma doença espiritual, mas não é por isso que a gente vai desistir de viver”, disse ele, entre pausas para relatar as tentativas frustradas de internação em clínicas de reabilitação. Ao menos 13 vezes, procurou ajuda, sem sucesso definitivo. Além da pasta base, o álcool é presença constante. “A cachaça é meu principal inimigo”, admite.
Entre as histórias que se cruzam no Centro, um jovem de 24 anos conta que começou a usar drogas há três meses, por influência de amigos. “Começa com maconha e bebida. Depois que experimenta pasta base, é difícil parar”, disse o rapaz, que trabalhava com materiais de construção.

Outro homem, de 54 anos, morador do bairro Jockey Club há duas décadas, afirma ter deixado a substância após anos de uso. “Não dá futuro, e o preconceito é grande. As pessoas discriminam quem usa”, afirmou. Ele se locomove em cadeira de rodas após um atropelamento.
Em comum, todos relatam a mesma realidade: a dependência destrói laços familiares, profissionais e afetivos. “A sociedade acha que a gente só rouba, mas o que falta mesmo é amor e ajuda”, resume um dos entrevistados.
Fundador do Projeto Simão, que atua na recuperação e reinserção de pessoas com dependência química em Campo Grande, Eliandro Simonetti confirma que a pasta base é a substância mais devastadora entre os usuários locais.
“Eles chegam a envolver a droga em Bombril, usado na cozinha, para potencializar o efeito. É uma substância que causa danos biológicos, psicológicos, sociais e familiares profundos, um verdadeiro tsunami na vida do usuário”, afirma.
Segundo ele, o sucesso no tratamento depende de múltiplos fatores. “É essencial o envolvimento da família durante e após o processo de recuperação".
"Não tem muito o que perder"
O psiquiatra Eduardo Araújo, que já foi coordenador da Rede de Atenção Psicossocial em Campo Grande, avalia que o modelo de tratamento, preconizado pelo governo federal, passa longe do ideal. “O que é oferecido ao paciente não é o melhor cenário”, diz.
Segundo ele, em geral, a oferta é de 15 dias no CAPS (Centros de Atenção Psicossocial), tempo insuficiente para que o paciente se restabeleça. “O tratamento não é simples. Não é só tomar remédio e ficar bem. Reconheço a importância do CAPS. Mas não é satisfatório, não é assim que deve ser feito”, lembra o profissional.
Uma vez no organismo, a pasta base é rápida. A fumaça chega ao pulmão, vai em segundos para o cérebro e aumenta, significativamente, o nível de dopamina. “Isso faz com que a pessoa se sinta cheia de poder, energia e autoconfiança. Mas toda a droga com efeito intenso é de curto período”, afirma Eduardo.
Minutos depois, a dopamina despenca e o efeito é severo. “Vêm a irritabilidade, a ansiedade e a angústia severa. A regra é essa, quando mais rápido for o efeito da droga, mais fácil de tornar dependente”.
Outro entrave nessa jornada, é de que o sucesso depende do tratamento individualizado. “Não tem como devolver uma pessoa para a rua e dizer: 'espero que não use a droga'”.
No contexto social, o usuário, que já tem um problema de saúde, também enfrenta cenário adverso, como rompimento dos laços familiares, endividamento e ausência de rede de apoio. Por isso, em paralelo, deveria ser oferecida oportunidade de emprego. O especialista afirma que há o temor de que o dependente reverta o salário para a compra do entorpecente, mas é preciso ter um mínimo de recursos para traçar projeto de futuro.
“Tem gente que não tem muito o que perder. O nível de satisfação de vida é baixo. A pessoa tem que ter motivação a mais e manter a abstinência da droga”, diz o médico.

“Um tsunami na vida do usuário”
Na psiquiatria, a dependência química é classificada como uma doença crônica e recorrente do cérebro, semelhante ao diabetes ou à hipertensão: pode ser controlada, mas não necessariamente “curada” de forma definitiva. Isso significa que a pessoa pode ficar anos ou até a vida inteira sem usar drogas, levando uma vida plena e funcional, mas continuará vulnerável a recaídas.
Estudos mostram que o cérebro de quem já desenvolveu dependência passa por mudanças químicas e estruturais que tornam o prazer, a motivação e o autocontrole diferentes do padrão. Com o tempo e o tratamento, o cérebro se readapta, mas a memória do uso e o risco de recaída permanecem.
Embora ainda existam poucos estudos brasileiros ou portugueses que apresentem uma “taxa de recuperação” específica para usuários de pasta base, o consenso entre especialistas é de que a dependência química tende a ter um caráter crônico e recorrente.
De acordo com manuais de referência da área médica, “a maioria dos que desenvolvem dependência desse tipo de entorpecente sofre várias recaídas, mesmo quando segue corretamente o tratamento”, conforme apontam pesquisadores da Faculdade de Medicina da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).
Em outras palavras, o tratamento pode interromper o consumo por determinado período, mas manter a abstinência prolongada depende de uma combinação de fatores clínicos, psicológicos e sociais favoráveis.
Policiamento é resposta institucional
Nas áreas visitadas pela reportagem, como a antiga rodoviária e o entorno do Jockey Club, o policiamento é constante. A PM (Polícia Militar) informou, em nota, que mantém presença ostensiva para garantir a ordem pública, mas ressalta que a questão ultrapassa a esfera policial.
“A presença de pessoas em situação de rua é uma questão multifatorial, que envolve também as áreas de saúde, assistência social e urbanismo, incluindo imóveis abandonados. É essencial que os demais órgãos competentes continuem desenvolvendo ações nas suas áreas de atuação”, destacou a PM.
A reportagem questionou a Prefeitura de Campo Grande sobre as vagas disponíveis para internação e aguarda resposta.
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