Camelô que "mal sabia ler" persistiu até formar filhos em Medicina
Narciso estudou apenas até o 4º ano e se dedicou para garantir a educação de Patrícia e Natanael

Narciso Soares dos Santos, de 54 anos, suportou, por anos, o peso das palavras “meu filho, você nunca será um professor”, ditas pela mãe. Sem estudos e ajudando a família na lavoura, a vida o levou às feiras e ao camelódromo de Campo Grande. Hoje, ele chora de alegria ao ver que o camelô que “mal sabia ler” não desistiu até formar os filhos em medicina.
RESUMO
Nossa ferramenta de IA resume a notícia para você!
Narciso Soares dos Santos, ex-camelô, superou as dificuldades da infância pobre e sem estudos para realizar o sonho de ver os dois filhos formados em Medicina. Natural do Paraná, Narciso trabalhou na lavoura desde criança e ouviu da mãe que jamais seria professor. Mesmo com pouca instrução, conseguiu lecionar por um ano e descobriu a importância da educação. Mudou-se para Campo Grande, tornou-se camelô e, com a esposa, Penha, incentivou os filhos, Patrícia e Natanael, aos estudos. Com esforço e dedicação, Patrícia formou-se em 2023 e Natanael se forma este ano. Narciso, hoje presidente da associação de camelôs, é exemplo de perseverança e prova de que o incentivo à educação transforma vidas.
“Se falar para uma criança uma palavra de motivação, às vezes ela esquece, mas se falar uma palavra de desânimo, ela vai carregar isso pela vida toda”.
Entre memórias e orgulho, ele conta que a frase que ouviu da mãe, enquanto morava na roça, no interior do Paraná, não foi dita por maldade, mas por falta de esperança em uma realidade que não permitia que nenhum dos 12 filhos dela pudesse sonhar.
A vida de Narciso não foi fácil. Com estudos até a quarta série, ele ocupava os dias com trabalho braçal nos campos de algodão ao lado do pai. O futuro dele mudou após uma oportunidade inesperada. O que a mãe disse que não aconteceria aconteceu: ele virou professor, pelo menos por um ano, mesmo sem ter completado os estudos.

“Naquela época, era assim lá. Eu aprendi o que sabia com a minha prima, que também foi professora, mas ela saiu, foi embora. Fiz 18 anos e ia me alistar no Exército quando vi o prédio da Secretaria de Educação de Cascavel. Fiquei sabendo que algumas pessoas fizeram um teste pra tentar ser professor e quis fazer também. Fiz e me falaram que era pra reunir os pais para uma reunião”.
Na cidade, o ônibus andava apenas 19 km dos 22 km necessários para ele chegar à casa onde morava com a família. O resto do percurso ele fazia a pé. No sítio, pegou um cavalo e foi convocar a vizinhança para que levassem os filhos à escola.
“Na época, não tinha nada de documento, só tinha registro de nascimento. Fui contratado e fiz isso por um ano. Dava aula do que eu sabia, da 1ª à 4ª série. Era tudo em uma sala e o conteúdo era para todas as matérias. Nesse ano aprendi muito. E aí descobri a importância do estudo”. A partir daí, tudo mudou na vida de Narciso.
Ele largou o Paraná e veio para o Mato Grosso do Sul. A chegada aqui não foi nada fácil, mas uma dupla paixão aliviou as coisas. Ele se encantou pela cidade e pela esposa, Maria da Penha, hoje mãe dos filhos dele, Patrícia e Natanael.

“Me apaixonei por duas morenas: a cidade e a minha esposa. Meus amigos ficaram com medo por eu largar de ser professor, achavam que eu iria continuar na roça com meu pai, mas eu falei que viria tentar a vida. Procurei serviço para todo lado, não achei nada. Meu tio trabalhava nas feiras. Fui ao Paraguai, comprei uns produtos e comecei a trabalhar nas feiras de bairro vendendo brinquedos. Nisso minha filha nasceu”.
Aqui começa a luta dele para que ela tivesse a educação que ele não pôde ter. Quando ela estava na idade certa, começou a comprar livros, incentivar hábitos de estudo e instigar a curiosidade pelo mundo por meio das palavras. Nessa época, ele não sabia que viveria o orgulho de vê-la formar-se em Medicina, muito menos que o mais novo seguiria os mesmos passos da irmã.
“Eu tenho 25 anos de camelódromo. Depois dos brinquedos, passei a vender roupa. Eu e minha esposa íamos até Goiânia buscar. Hoje estou como presidente do camelódromo e falo que o estudo muda a história da pessoa. Não existe o impossível, existe a falta de incentivo. Eu fiz o que eu pude e isso abriu portas para eles. Eu sou um incentivador.”
Ele conta que, durante sete anos, acordou cedo para levar o filho mais novo ao colégio militar, onde o filho demorou a conseguir entrar. Narciso dormia no carro enquanto os filhos faziam atividades que ele julgava importantes, como música e inglês.
“Meu filho mais novo foi criado ali dentro do camelódromo. Eu sabia da importância que tinha o estudo, por isso incentivei meus filhos, mesmo sendo filhos de pessoas humildes. Ver eles médicos é uma felicidade extrema e um sonho realizado. Fácil não foi. Sei a luta deles, nossa luta desde pequeno. Eu comprava revistas para minha filha ler quando pequena. Foi ela que ensinou o irmão a ler também, ele entrou na escola e já sabia”.
Narciso comenta que, apesar da realidade dura, sempre foi um menino sonhador e explica que as palavras da mãe o afetaram tanto, na época, porque ele tinha medo de ela não acreditar que ele conseguira sonhar.
“Eu tinha medo. Hoje eu vejo que carreguei isso por muitos anos. Sempre que pensava no sonho que eu tinha, lembrava dessas palavras. Quando comecei a trabalhar na feira, eu tinha pouca coisa e, de noite, sonhava que estava roçando algodão no Paraná. Aí lembrava que tinha minha banquinha aqui”.
Ele relembra a época em que chegou a dormir em um papelão na casa de parentes que também não tinham condição de recebê-lo, mas mesmo assim o fizeram. O período complicado emociona Narciso. Há três anos ele está como presidente do camelódromo e fechou a banca que tinha com a esposa.
“Ao longo da minha vida, encontrei pessoas que me motivaram, pessoas que não eram da minha família. Quando cheguei aqui, morei na casa do meu tio. Eu dormia sobre um cobertor no chão. Quando veio a época do frio, eu peguei papelão para forrar o chão. Eu acordava à noite e estava tudo gelado; passei muito frio. Eles não tinham muita condição também. Hoje, ver meus filhos médicos e ser presidente do camelódromo me enche de orgulho. Uma palavra de incentivo pode mudar a vida de alguém”.
Penha, como gosta de ser chamada, comenta que nunca imaginou que os filhos se tornariam médicos. "Aos nossos olhos, parecia impossível, mas nunca desistimos. É uma conquista para todos. Foram oportunidades que soubemos aproveitar".
A filha mais velha do casal, Patrícia dos Santos de Araújo Kanashiro, diz que os pais tiveram papel primordial na vida dela e que a figura do pai é um reflexo de gratidão e renúncia.
“Meu pai é um homem muito sonhador e sempre nos ensinou assim. Batalhou muito desde cedo e nos mostrou que, para alcançar nossos objetivos, deveríamos agir desta forma. Investiu em nossos estudos. Era uma correria para a gente se deslocar da escola para cursinho e ele almoçava no carro para conseguir me levar e meu irmão. Ele abriu mão de muita coisa que desejava para conseguir nos proporcionar. Eu, esse ano, completei 2 anos de formada e meu irmão se forma esse ano”.
Natanael Araújo completa que Narciso sempre foi um apoio para ele e para os estudos, e que incentivo nunca faltou. “Me levando e buscando todos os dias, investindo financeiramente, orientando e apoiando nos estudos, inclusive em música e inglês, o que me levou a conhecer uma americana por meio da música, com quem hoje sou noivo e vou me casar no ano que vem. Na medicina, ele sempre me orientou e apoiou”.
Acompanhe o Lado B no Instagram @ladobcgoficial, Facebook e Twitter. Tem pauta para sugerir? Mande nas redes sociais ou no Direto das Ruas através do WhatsApp (67) 99669-9563 (chame aqui).
Receba as principais notícias do Estado pelo Whats. Clique aqui para entrar na lista VIP do Campo Grande News.