CPI expõe colapso do Sisfron e deixa fronteira de MS vulnerável às facções
Sistema bilionário opera só 30%, não integra PF e Exército e pode levar 40 anos para ser concluído.

Se há algo que a CPI do Crime Organizado do Senado deixou claro já em sua primeira semana de trabalhos é a inoperância do Sisfron, o sistema bilionário criado para vigiar as fronteiras do país e que, segundo o diretor-geral da PF, Andrei Rodrigues, oferece hoje “pouco proveito” às forças de segurança.
RESUMO
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O Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras (Sisfron), projeto bilionário criado para vigilância das fronteiras brasileiras, opera com apenas 30% de sua capacidade, conforme revelado na CPI do Crime Organizado do Senado. O diretor-geral da Polícia Federal, Andrei Rodrigues, afirmou que o sistema oferece "pouco proveito" às forças de segurança. A situação é especialmente crítica em Mato Grosso do Sul, região fronteiriça com Paraguai e Bolívia, que se tornou rota de dispersão para lideranças do PCC e Comando Vermelho. O sistema, que já consumiu mais de 2 bilhões de reais, enfrenta problemas como equipamentos roubados, torres inoperantes e falta de integração com delegacias locais.
A revelação atinge especialmente Mato Grosso do Sul, ponto mais sensível do mapa criminal sul-americano, onde o provável deslocamento de lideranças do PCC e do Comando Vermelho para Paraguai e Bolívia expõe a fragilidade de uma fronteira que deveria ser protegida por uma tecnologia que nunca funcionou como prometido. Por esse corredor passou a maior parte das 70 toneladas de cocaína apreendidas este ano.
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Roubos, inoperância e abandono
A declaração de Rodrigues caiu como uma ducha de água fria sobre os trabalhos da CPI. O alerta incide com mais força sobre Mato Grosso do Sul, que concentra os trechos mais vulneráveis da fronteira e se tornou possível rota de dispersão de chefes do PCC e do Comando Vermelho após operações recentes no Rio de Janeiro.
No momento em que o país tenta reorganizar sua estratégia fronteiriça, os indícios de colapso operacional do Sisfron — antes mesmo de ser entregue como projeto de defesa e de segurança — expõem uma lacuna crítica justamente onde o crime avança mais rapidamente que o Estado.
Primeiro parlamentar a colocar o Sisfron no radar da CPI, o senador Angelo Coronel (PSD-BA) relatou ter visitado pessoalmente uma unidade do sistema no Exército em Ponta Porã. Reforçou que o projeto foi “concebido em 2008, implantado em 2012 e está há 13 anos sem definição oficial”, e não entrega resultados às forças integradas que atuam na região.
Coronel descreveu um cenário de abandono: “o que tenho sabido é que são torres inoperantes, roubo de equipamentos, e eu fico me perguntando se estão roubando equipamentos do próprio Exército”. Disse que o Sisfron funciona hoje com apenas 30% de sua capacidade, deixando 70% por implantar, e que, “no ritmo atual”, a conclusão só ocorreria em 2065.
Para o senador, que chamou os 17 mil quilômetros de fronteira seca de um “verdadeiro queijo suíço”, o país precisa de um “muro virtual”, com radares e satélites já disponíveis, e a CPI deve pressionar o governo federal a concluir o sistema “o mais rápido possível”.
Ao ouvir a crítica à falta de prioridade para concluir um projeto tão importante para barrar drogas, armas, contrabando e descaminho, matéria-prima que abastece o crime nas grandes cidades, o diretor da PF respondeu apenas que, “em razão do estágio do sistema”, o Sisfron oferece pouco proveito à segurança pública, reconhecendo que a integração com as Forças Armadas e outros órgãos precisa ser rediscutida no governo.
Dagoberto e Coronel detalham abandono, falhas e custos sem fim
A crítica parlamentar encontra eco em Mato Grosso do Sul. O deputado Dagoberto Nogueira (PSDB-MS), duas vezes secretário de Segurança Pública do estado, reforça que o Sisfron “só funciona parcialmente”. Segundo ele, o próprio comando militar admite que o sistema é avançado “se estivesse em pleno funcionamento”, mas hoje opera “uma hora sim, outra não”.
Os militares mostraram a ele que o Sisfron seria capaz de detectar plantações de maconha no Paraguai, acompanhar colheitas, rastrear caminhões que saem das áreas de plantio e acionar alertas automáticos, além de monitorar aeronaves irregulares para acionar a base aérea de Campo Grande. “Mas não está tudo funcionando.”
Dagoberto também abordou o custo: “Ali é um saco sem fundo. Já botaram mais de 2 bilhões (no trecho que compreende Mato Grosso do Sul) e não dá conta de fazer funcionar 100%. Demorou tanto que ficou obsoleto, e dizem que tem que trocar por outro. É maluco.”
Para ele, parte da falha está na execução militar: “Tudo que é deles é mais caro e não termina. Se o aeroporto de Dourados tivesse sido feito pela Secretaria de Obras, ficava metade do preço e do tempo.”
O deputado reforça ainda que o Sisfron não está integrado, reproduzindo a crítica feita por Andrei Rodrigues na CPI: “Só funciona lá na torre. Não integra na delegacia. Era para o policial ver dali o que vê na torre. Não consegue.”
Dagoberto vai além e afirma que a dificuldade de consolidar um sistema de segurança nacional — incluindo o Sisfron — também é política. Segundo ele, alguns governadores operam contra a coordenação federal por interesse próprio: “Esses governadores extremistas — Santa Catarina, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas e Goiás — não querem a presença da PF. Não querem controle. A Polícia Civil e a Militar eles controlam. E as milícias também eles controlam.”
Ele afirma ter votado contra o projeto antifacação aprovado na Câmara por ver nele mais autonomia a esses governos: “Queriam até passar coisa de terrorismo para dar mais poder aos estados. Um negócio maluco. Como vou votar nisso? Fui secretário de Justiça e Segurança duas vezes.”
Diante da ineficácia do Sisfron, Rodrigues relatou que a PF tem recorrido a alternativas tecnológicas, como o Projeto Mitra, desenvolvido em parceria com os governos de Mato Grosso do Sul e Paraná e já aplicado também na Amazônia.
O programa integra bases de dados, usa ferramentas eletrônicas e reúne informações, imagens e inteligência — justamente a capacidade que o Sisfron deveria oferecer e não oferece. Ele citou ainda o uso de satélites financiados pelo Fundo Amazônia para monitorar garimpo, desmatamento e balsas criminosas, tecnologia que pode ser expandida à faixa de fronteira enquanto o sistema militar não entrega o prometido.
Rodrigues destacou que as brechas não se limitam ao fluxo terrestre. A maior apreensão de fuzis da história da PF ocorreu no Aeroporto do Galeão, com armas enviadas de Miami sem passar por raio-x. Outras operações desmontaram fábricas clandestinas no Rio e em São Paulo capazes de produzir até 3.500 fuzis por mês. Muitas armas entram desmontadas, em peças, escapando completamente da vigilância incompleta do Sisfron — ponto que motivou Coronel a perguntar como fuzis de “quase um metro de comprimento” entram tão facilmente no país.
Crime avança, integração emperra e o país segue sem estratégia
A faixa de fronteira de Mato Grosso do Sul com Paraguai e Bolívia concentra hoje alguns dos pontos mais críticos do crime organizado no Cone Sul. Em Ponta Porã–Pedro Juan Caballero, sem barreira física entre as cidades, circulam maconha paraguaia, cocaína boliviana, armas e sicários ligados ao PCC, em um corredor de violência extrema.
Em Corumbá, o fluxo de cocaína é intenso, com apreensões de centenas de quilos de droga pura e homicídios em alta, atribuídos à disputa de rotas. Uma das modalidades mais rentáveis do tráfico é operada pelo PCC, que arregimenta bolivianos social e economicamente frágeis para carregar droga no sistema digestivo — as chamadas “mulas engolidas” — na rota Santa Cruz de la Sierra/Corumbá/São Paulo, onde, neste ano, já foi apreendida perto de uma tonelada de cocaína pura.
Apesar das falhas estruturais, Rodrigues descreveu o avanço da integração entre a PF e as forças de segurança de Mato Grosso do Sul. A FICCO/MS reúne PF, PRF, Polícia Civil, Polícia Militar e Agepen e já aparece em operações conjuntas. A Sejusp divulga ações de interoperabilidade e convênios de compartilhamento de dados. No plano federal, o Mitra figura em comunicados públicos, prevendo integração de grandes bancos de dados nacionais, uso de inteligência artificial e sensores nos trechos mais críticos — especialmente MS e Paraná.
Mas nem o governo federal, nem o estadual, nem a PF divulgam diagnósticos, metas ou indicadores de desempenho. Falta documentação que permita aferir impacto, coordenação ou prioridades. O resultado é um mosaico desconexo: operações integradas existem; o Mitra avança; iniciativas estaduais se alinham à lógica tecnológica; mas os documentos estratégicos que deveriam unir tudo — diagnóstico, objetivos, métricas e responsabilidades — permanecem ausentes.
Essa falta de transparência é especialmente grave em Mato Grosso do Sul, epicentro do tráfico de cocaína, armas e contrabando no Cone Sul e região onde, segundo investigações recentes, há possibilidade de deslocamento de quadros do PCC e do Comando Vermelho para Paraguai e Bolívia. Na CPI, Rodrigues reafirmou que a área é prioridade nacional. Mesmo assim, não há plano público que permita conhecer metas específicas da integração PF–MS ou o impacto esperado da expansão do Mitra e das bases aéreas.
Sem instrumentos de planejamento e coordenação, a avaliação das políticas de fronteira segue restrita a anúncios e operações isoladas — enquanto o Sisfron, principal sistema nacional de vigilância terrestre, permanece caro, atrasado, fragmentado e, como definiu o diretor da PF, de “pouco proveito”.

