PCC domina a fronteira, mas quem manda é a Faria Lima, diz ex-chefe da PF em MS
Edgar Marcon afirma que Sisfron é símbolo do fracasso estatal: caro, lento e incapaz de enfrentar as facções
Com 38 anos de Polícia Federal, dos quais quatro como superintendente em Mato Grosso do Sul e os dois últimos como adido em Assunção, experiência que une teoria às ações operacionais, o delegado aposentado e advogado Edgar Paulo Marcon descreve uma transformação histórica na fronteira: os antigos “reis” do contrabando, como Fuad Jamil, a família Mota e até Jorge Rafaat, executado quando confrontou o avanço do PCC no tráfico de cocaína, foram varridos ou empurrados para a contravenção.
RESUMO
Nossa ferramenta de IA resume a notícia para você!
A mesma lógica que, décadas antes, permitiu ao Comando Vermelho eliminar atravessadores no ciclo da maconha em Capitán Bado se repetiu com o PCC em Ponta Porã: quem não se adaptou, morreu. Hoje, diz Marcon, o PCC controla com sangue a fronteira sul-mato-grossense e todo o circuito da cocaína, das plantações e laboratórios da Bolívia, Peru e Colômbia aos entrepostos brasileiros e se comporta como máfia internacional, infiltrada em negócios, postos de gasolina, política e economia formal.
- Leia Também
- CPI expõe colapso do Sisfron e deixa fronteira de MS vulnerável às facções
- Traficantes planejavam “ir atrás” de mandante de atentado contra o Gaeco
Mas, para ele, o comando real não está mais no mato nem nas facções visíveis. “Quem manda na fronteira não é Marcola. Quem manda é a Faria Lima”, afirma, ao sustentar que a engrenagem do tráfico internacional atende às ordens do mercado financeiro, a nova rainha da fronteira, enquanto os chefes locais, violentos e descartáveis, se revezam em ciclos de dois ou três meses.
A ascensão do PCC e a queda dos antigos “donos” da fronteira
A trajetória que desembocou nesse novo domínio começa, segundo Marcon, ainda nos anos 1980 e 1990, quando Fernandinho Beira-Mar, então um dos nomes mais influentes do Comando Vermelho, foi acuado no Rio e atravessou a fronteira em busca de proteção. Em Capitán Bado, sob a guarda da família Morel, grandes plantadores de maconha, o Comando Vermelho descobriu a facilidade da produção e do transporte. Rapidamente eliminou atravessadores e assumiu o ciclo inteiro do contrabando: origem, logística e destino final.
O padrão se repetiria quase três décadas depois. Pressionado em São Paulo, o PCC se refugiou em Ponta Porã, inicialmente sob a influência de Jorge Rafaat e outros barões locais. Depois os eliminou, como Beira-Mar fizera em Capitán Bado. A execução de Rafaat, em plena luz do dia, selou o fim da velha linhagem do contrabando e consolidou a ascensão de uma facção de alcance continental.
Com a fronteira sob seu domínio, o PCC passou a atuar também na origem da cocaína. “Hoje eles já estão lá na produção”, diz Marcon, citando bases e interlocuções no Peru, na Bolívia e na Colômbia. O delegado afirma que facções brasileiras estão mais fortes em Assunção e em capitais produtoras do que muitos governos locais. “As facções brasileiras estão dominando o crime internacional”, resume, rejeitando a tese de classificá-las como terroristas. “Isso é máfia. Don Corleone, personagem criado por Mario Puzo e imortalizado por Francis Coppola, é criancinha perto do PCC e do Comando Vermelho.”
O fracasso do Sisfron e a fronteira “aberta”
Embora destaque o poder das facções, Marcon desloca a análise para a responsabilidade do Estado. E aqui, diz, o fracasso é sistêmico, com foco no Sisfron, o sistema de vigilância de fronteira operado pelo Exército, que consumiu bilhões e nunca entregou o que prometeu. “Nunca funcionou, e agora funciona menos ainda”, afirma.
Ele lembra que acompanhou o lançamento do programa em Dourados, há mais de uma década, quando dezenas de "Engesas" e estruturas vistosas foram apresentadas como promessa de modernização. O que se viu, diz, foi um sistema caro, militarizado e incapaz de reagir ao crime real. “Se fosse coordenado pelas polícias, talvez. Mas o Exército é pesado, lento e não tem como fazer combate cotidiano ao crime”, afirma. “O militar nem quer atuar diretamente no enfrentamento. Estavam de olho num dinheiro, numa soma absurda para implementar um plano estratégico, de defesa do país, não de combate ao crime.”
As operações Ágata, frequentemente usadas como demonstração de força — são, para Marcon, a expressão máxima do desperdício. “Mobilizam centenas de militares por 15 dias e não apreendem nada. Os traficantes só esperam desmobilizar”, diz. Drogas e armas, explica, são bens físicos que exigem presença policial permanente, não ações episódicas.
O Estado, porém, não colocou efetivo nas estradas e nos pontos de escape da fronteira, nem integrou seus órgãos. “A PRF quer fazer inteligência; a PF quer fazer ostensivo; a Polícia Civil quer fazer fronteira. É todo mundo querendo fazer tudo e ninguém fazendo nada. Uma colcha de retalhos.” E aponta o mais grave: “Hoje você sai de qualquer área dessas e não encontra um policial sequer. A fronteira está aberta.”
Outra parte do problema é conceitual: o Sisfron foi desenhado como sistema de defesa, não de segurança pública. “O militar é treinado para matar o inimigo, não para lidar com crime complexo”, resume. A tecnologia, diz, envelheceu sem nunca ter funcionado plenamente, como os radares de acompanhamento aéreo. E a fragmentação de comandos, Exército de um lado, polícias de outro, reforça rivalidades e paralisia. “Faltou comando único. Faltou integração. Faltou entender que crime se combate com polícia — e polícia na rua.”
Corrupção, interferência política e um Estado fragmentado
Marcon destaca que o crime avança porque encontra uma brecha decisiva: a corrupção. “O crime organizado não tem como competir com o Estado. O Estado é sempre o poder mais forte dentro de um território. Quando mesmo assim o crime cresce e se espalha, só existe uma explicação: há corrupção no meio.” Ele afirma não ter dúvidas de que a expansão descontrolada do crime nasce da corrupção que assedia o policial da fronteira, mas também do “andar de cima”: pressões políticas para enfraquecer órgãos de controle e infiltração das facções em instituições e no mercado financeiro.
A desorganização institucional se acentua, segundo ele, com interesses políticos e disputas por orçamento. O delegado critica iniciativas que buscam enfraquecer a Polícia Federal, o Banco Central e a Receita Federal, órgãos que atingem o crime no que ele tem de mais vulnerável: o dinheiro.
“Quando mexem no que funciona, algo está errado”, afirma. Nos últimos dias, deputados tentaram incluir no projeto antifacção do deputado Guilherme Derrite (PP-SP) dispositivos para subordinar ações da PF aos governadores e até dar à Câmara o poder de demitir dirigentes do Banco Central. Para Marcon, Derrite pode ter sido um bom capitão da PM, mas não tem formação para legislar sobre estruturas de combate ao crime organizado. “Estão querendo colocar o delegado para comandar o trânsito e a polícia militar para legislar sobre crime organizado.”
No contexto nacional, o delegado vê com ceticismo o papel da CPI do Crime Organizado. “CPI faz relatório e morre”, diz, defendendo continuidade e integração. “Homens na rua, inteligência nos grandes centros. É isso.”
Marcon tem um receituário direto, sem rodeios: concentrar esforços nas três rodovias críticas do Mato Grosso do Sul; criar rodízio permanente de efetivo; integrar PRF, PF, PM e polícias civis; retomar operações de presença física; e usar a tecnologia existente para identificar desde grandes cargas até muleiros e veículos reincidentes. “A tecnologia existe. Falta integrar. Falta comando. Falta deixar cada força fazer o que sabe fazer.” Sem isso, conclui, o crime continuará unificado, internacionalizado e operando como máfia — enquanto o Estado segue fragmentado e lento.



